Por Icles Rodrigues
“O mundo deve estar seguro
para a democracia. Sua paz deve ser plantada sobre as fundações testadas da
liberdade política. Nós não temos fins egoístas a servir. Não desejamos nenhuma
conquista, nenhum domínio. Não buscamos indenizações para nós mesmos, nenhuma compensação
material para os sacrifícios que nós devemos fazer livremente. Nós somos apenas
um dos campeões dos direitos da humanidade.”
“Nenhum limite do cinismo
perturba a equanimidade dos moralistas ocidentais.”
Noam Chomsky [2]
As
relações entre o governo, as elites e a mídia estadunidense são estreitas, e
estes, inegavelmente, se beneficiam uns dos outros. Desde o século XIX, a
distorção de acontecimentos, a manipulação através da retórica, de jornais e
meios distintos de se propagar notícias funcionou, muitas vezes, em consonância
com interesses expansionistas dos Estados Unidos, tal qual ocorre por todo o
mundo; mesmo sendo um país ainda jovem, não tardou a mandar um recado para os
imperialistas europeus de que apenas a ele competia o papel de protetor e – nas
entrelinhas, estava clara tal mensagem – dominador do continente americano.
A
série de textos a seguir tem como objetivo – ainda que consciente das enormes
lacunas oriundas de uma abordagem rápida a respeito de quase dois séculos de
história – um panorama da consonância entre o militarismo e o imperialismo dos
Estados Unidos em relação ao resto do mundo a partir do século XIX; no decorrer
da apresentação deste conteúdo, discorreremos sobre o papel da mídia e dos
argumentos de legitimação, não apenas para justificar o intervencionismo no
exterior, mas para dissertar sobre a manipulação de informações dentro dos
Estados Unidos.
PARTE 1
O EXPANSIONISMO A PARTIR DO SÉCULO XIX
Após
a independência por parte das treze colônias iniciais do lado leste do
território que hoje conhecemos por Estados Unidos da América do jugo britânico,
os líderes do jovem país sentiram a necessidade de uma expansão para os
territórios além dos Montes Apalaches, ambicionada mesmo antes da independência
adquirida em 1776, mas impedida pelos britânicos. Após esta conquista, não
haveria resistência externa contra esta expansão territorial, que traria, entre
outras coisas, uma imensa riqueza material ao país, desejoso de se tornar uma
grande potência.
Doutrina
Monroe e o expansionismo rumo ao Oeste
A maior parte desse território do oeste pertencia
originalmente ao México, que já havia deixado de ser colônia espanhola no
início do século XIX, e cuja população era composta tanto por mexicanos,
europeus e descendentes destes quanto por uma série de povos indígenas, que
resistiam, em sua maioria, à ocupação de suas terras por parte dos colonos
brancos estadunidenses. Conforme afirma Claude Fohlen,
um
grande número de americanos foi durante muito tempo atraído pelas
possibilidades oferecidas pelo oeste, considerando-o uma espécie de Eldorado,
cuja conquista era assegurada pelos pioneiros, munidos da experiência adquirida
no leste.[3]
Estes não apenas eram compostos por estadunidenses, mas também
por uma leva de imigrantes europeus que deixou a Europa em busca de uma vida
melhor na ‘América’ – embora muitos imigrantes já estivessem no país desde
antes da independência –, alimentada por
uma
publicidade muito bem elaborada pelas seitas religiosas, companhias de estradas
de ferro, sociedades de mineração, a imprensa local, uma literatura que
excitava a curiosidade [...], os onipresentes e onipotentes agentes
imobiliários, sem esquecer as autoridades municipais, desejosas de preencher o
vazio dos quarteirões urbanos.[4]
O
estado do Texas, que havia se tornado independente do México, aderiu à União,
despertando a ira do governo mexicano e resultando em um conflito entre os dois
países. Este último, abalado por uma longa guerra civil e a intervenção estrangeira
constante, não foi páreo para os Estados Unidos, que lhe impôs uma pesada
derrota, interessados no controle das plantações de algodão texanas. Posteriormente,
decididos a tomar a Califórnia mexicana por conta, entre outras coisas, de
interesses marítimos, os Estados Unidos se viram em guerra novamente contra o
México. Finalmente em 1948, os dois governos assinaram o Tratado de Guadalupe-Hidalgo
cedendo o Novo México e a Califórnia aos Estados Unidos.[5]
Em
partes, esse expansionismo possuía respaldo anterior. Após assumir a
presidência, James Monroe fez a opção de manter uma diplomacia relativamente
neutra quanto ao envolvimento dos Estados Unidos com os países estrangeiros,
focando nos assuntos internos – nesse caso, não apenas do país constituído, mas
do continente americano. Chamada de Doutrina Monroe, esta política foi
anunciada em 1823 no congresso: os Estados Unidos prometiam não interferir na
Europa, desde que os Europeus não interferissem na América, enquanto se
colocava como guardiões das questões que pudessem envolver o continente como um
todo. Em suma, a “América para os americanos”.[6]
Embora
dê a entender que tal doutrina se trate de formulações do presidente Monroe,
ela na verdade representava as ideias de John Quincy Adams, membro do Partido
Federalista; este, anos antes, elogiou a “eficácia salutar” do terror e do
extermínio das “hordas misturadas de índios e negros sem lei”,
se referindo ao massacre das populações nativas da Flórida a mando do
ex-presidente Andrew Jackson, impressionando, por exemplo, o hoje tão aclamado ex-presidente
Thomas Jefferson por sua eficácia.[7]
Adams pretendia concorrer à presidência, e para tal, tinha que afastar qualquer
indício de simpatia pelos britânicos, o que resultaria nos elementos da
doutrina.[8]
Esta se tornaria um princípio fundamental da política externa estadunidense
durante presidência de James K. Polk (1845-49), que segundo Chalmers Johnson,
“conquistara mais território para os Estados Unidos do que qualquer outro
presidente anterior à exceção de Thomas Jefferson”.[9]
Foram invocadas, durante sua presidência, na partilha do Oregon com a
Grã-Bretanha e no momento da guerra dos EUA com o México, advertindo as
potências europeias a não interferirem no conflito.[10]
Estavam em andamento os primeiros passos do imperialismo estadunidense, não sem
a devida matança que o caracteriza, como no exemplo mais célebre do século XIX:
o massacre de populações nativas, cujo ápice se deu entre o fim da Guerra Civil
e cerca de 1890, no fim do período conhecido como ‘Velho Oeste’, inspirados na
noção de “Destino manifesto”, que advogava aos Estados Unidos a detenção de
virtudes especiais e a missão de levar ao mundo os valores do país. Tais
conceitos eram largamente propagandeados, tendo como resultado apoio popular,
em maior ou menor escala de acordo com o caso.
Guerra contra a
Espanha e o intervencionismo em Cuba
A
guerra, chamada por autores estadunidenses de “Guerra Hispano-americana” se deu
em decorrência de revoltas em Cuba contra o domínio espanhol. Dispostos a
ampliar sua influência no continente, os Estados Unidos se aproveitaram da
manipulação de informações feita, principalmente, por Joseph Pulitzer, do New York World e Willian Randolph
Hearst, este último com seu New York
Journal. Como nos conta Chalmers Johnson,
Antes e durante
a Guerra Hispano-americana de 1898,
a imprensa foi manipulada de forma a fomentar uma febre
belicista na opinião pública e, ao mesmo tempo, omitir relatos das atrocidades
e crimes de guerra cometidos pelas forças americanas nas Filipinas.[11]
Em circunstâncias
nunca devidamente esclarecidas, o navio estadunidense Maine explodiu, sendo usado, então, como bode expiatório para
incentivar a comoção pública. Hearst, inclusive, estampou no New York Journal “desenhos mostrando
como os sabotadores espanhóis tinham colocado uma mina sob o Maine, detonando-a depois à distância”.[12]
Enviou, tempo depois, o artista Frederick Remington para que produzisse imagens
das cenas de rebelião cubanas contra a opressão espanhola. Ao pedir a Hearst
para retornar aos Estados Unidos por não ter encontrado nenhum estado de
guerra, Remington recebeu uma resposta que se tornou famosa: “Continue aí.
Trate de providenciar as imagens, que da guerra me ocupo eu”.[13]
Dentro de pouco tempo, o esforço destes dois jornalistas – um deles cujo
sobrenome batiza um dos prêmios mais ilustres do jornalismo – em manipular as
narrativas dos acontecimentos fez com que a guerra contra a Espanha fosse, por
fim, declarada.
Capa do New York Journal de 17 de fevereiro de 1898, acusando a Espanha pelo
afundamento do Maine.
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Chalmers Johnson
argumenta que este conflito teria sido o estopim do imperialismo estadunidense
e que teria colocado o país no rumo do militarismo. O episódio é de suma
importância por nos demonstrar com maior riqueza de detalhes o papel de uma
mídia encarregada da manipulação de informações objetivando o benefício das
investidas militares, numa relação estreita que não cessou de existir no
decorrer do século XX e permanece forte neste início de século XXI.
Quanto a esse
militarismo, é importante frisar que o pensamento político em relação à
mobilização tradicional nas origens do país é substancialmente diferente do que
vemos atualmente. George Washington, no seu discurso de despedida em 17 de
setembro de 1776, afirmou que “A regra essencial de conduta que temos de seguir
no tocante às nações estrangeiras é estender nosso intercâmbio comercial
mantendo, ao mesmo tempo, o mínimo de relações políticas”.[14]
No mesmo discurso, Washington faz uma crítica às organizações militares
permanentes: “Organizações militares grandes demais são, em qualquer forma de
governo, um mau presságio para a liberdade e devem ser vistas como
particularmente hostis às liberdades republicanas”.[15]
James
Madison, um dos arquitetos da Constituição dos Estados Unidos, faz um
comentário ainda mais contundente sobre a questão dos exércitos e da guerra:
De todos os
inimigos da liberdade pública, a guerra é o mais temível, porque compreende e
nutre o germe de todos os demais. A guerra gera os exércitos; deles procedem as
dívidas e os impostos; e guerras, dívidas e impostos são os instrumentos que
colocam a maioria sob o domínio de uns poucos.[16]
Tais conselhos de
nomes ainda hoje consagrados por aqueles que se remetem hipocritamente à
história dos Estados Unidos são ignorados, dada a inconveniência de se
ressaltar as declarações antibelicistas dos ‘Pais fundadores’, que seriam
deveras inconvenientes diante dos usos políticos das histórias da fundação do
país.
CONTINUA NA PARTE 2 (Clique AQUI para ler)
[1]
Trecho retirado de: BEARD, Charles A.; BEARD,
Mary R. A basic history of the United
States. Philadelphia: The New Home Library, 1944, p. 432.
[2] CHOMSKY, Noam. O que o Tio Sam realmente quer.
Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999, p. 79.
[3] FOHLEN, Claude. O
faroeste. São Paulo: Companhia das Letras; Círculo do Livro, 1989,
p. 16.
[4] Idem.
[5] KARNAL, Leandro et
al. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. 2. ed. São
Paulo: Contexto, 2010,
p. 128.
[7] CHOMSKY, Noam. O que o Tio Sam realmente quer.
Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999, p. 38.
[8] JOHNSON, Chalmers. As aflições do império. Rio de Janeiro:
Record, 2007, p. 219.
[9] Idem.
[10] Ibid., p. 219-220.
[11] Ibid., p. 51.
[12]
Ibid., p. 52.
[13]
Ibid., p. 52-53.
[14]
Ibid., p. 57.
[15]
Ibid., p. 51.
[16]
Ibid., p. 57