28 de abril de 2016

Sobre ativismo e biscoitos


O texto abaixo foi postado no blog #AgoraÉQueSãoElas, do site do jornal Folha de São Paulo, e é de autoria de Helena Vieira* e Sofia Favero**. O texto original pode ser lido aqui.

A internet tem sido usada pelo feminismo e pelos movimentos sociais como uma ferramenta política, causando uma reviravolta na comunicação de causas. Ela possibilitou que calados tivessem voz, que falássemos para pessoas que nem sequer imaginavam que nós existíamos. Agora contamos nossas histórias e promovemos debate.

Entretanto, essa interação nem sempre é democrática, pois os discursos rapidamente tornam-se rígidos, engessados, inibem outras subjetividades, deslegitimam outras narrativas do ser, de si.

O ativismo virtual, em todas as agendas e também no que tange ao feminismo, tem apresentado tendências preocupantes. Na medida em que o discurso produzido nesse contexto exige a articulação de uma identidade coletiva, a possibilidade de falar de si mesma se reduz, infelizmente. No caso do feminismo e do ativismo virtual a ele relacionado, isso é evidente. As narrativas masculinas ou que articulam elementos de masculinidades, como as de travestis, são muitas vezes vistas com maus olhos.

Dialogar a partir de si esbarra, portanto, no discurso fixo, regrado, uniforme. Discurso esse que avança em muitas frentes da luta por direitos e contra a desigualdade, mas não atende às narrativas de muitas travestis que acabam se afastando da militância, por exemplo. Além disso, o discurso é de tal modo fixo que se abre a críticas ou ao dissenso com muita dificuldade. Nesse sentido, homens são constrangidos ao falar sobre desigualdade de gênero, ainda que esses também carreguem a marca dessa desigualdade e possam contribuir para combatê-la.

Paradoxalmente, é quando a informação rompe a bolha ativista e ganha novas audiências – aquilo que deveria ser o objetivo do ativismo, que alguns mecanismos contraproducentes se revelam. Ou seja, é quando os opressores passam a criticar os regimes de opressão que algumas estratégias controversas são evidenciadas. Embora o sujeito esteja pavimentando o caminho para o avanço das propostas que nos interessam, é dito que ele está roubando o protagonismo, desrespeitando a vivência alheia.

Essa tomada de posicionamento, apesar de buscar valorizar a perspectiva de quem sofre aquilo que conta, também presume que buscar solução para a desigualdade de gênero é tarefa exclusiva das mulheres. O feminismo no contexto virtual, ao definir que apenas estas podem articular perspectivas de mudança, reitera essa noção. Qual a expressividade de um movimento social que desconsidera a participação de uma grande parcela da sociedade? Aliás, que distancia do debate justamente os principais condutores que dão forma ao machismo? Essa parcela deixará de se impor sobre as mulheres? É evidente que a participação de outras vozes em nossa luta é importante. Homens também possuem lugar de fala que interessa aos ouvidos feministas. E podem ser agentes de mudança.

Se assumimos que os homens estão nos centros de poder e que podem agir a partir destes centros, faz-se necessário o diálogo – negando, evidentemente, a exclusividade narrativa deles. Ativismo é isso, disputa e tentativa de convencimento.

O ponto é que, quando feministas reconhecem a importância da participação masculina, passam a ser ridicularizadas sob o rótulo de “biscoiteiras”. Dito de um modo simples; aquela que fala pela inclusão masculina apenas para cativá-los, para receber deles algum agrado. Para esse feminismo, mulheres se vestem como querem, são donas de seus próprios corpos, mas aparentemente não do próprio senso crítico. Incapazes de desenvolver uma estratégia de ação – que neste caso envolva a construção de aliados homens. Ora, não seria essa lógica a mesma do patriarcado, ao dizer que estamos sempre em função dos homens? Tratá-las como se fossem incapazes, alienadas de si, seres sem autonomia, que só existem mediante o olhar e a aprovação do outro, faz com que percam a condição de sujeito. De agente político.

Por outro lado, à medida que mulheres são apelidadas dessa forma, aos homens é dito que estão em busca de “biscoito” quando realizam ou dizem algo assertivo a favor do feminismo. É uma política sem lógica. Criticam exatamente aquilo que esperam dos homens, como se fosse impossível existir algum que se preocupasse com as questões feministas sem ter segundas intenções ou ganhos secundários. Além de reforçar uma essência opressora, essa postura também impede que outros reverberem nossas ideias, encerrando-as em nosso núcleo.

O uso do termo “biscoito” reitera uma série de protocolos invisíveis; entre eles, sobretudo, o de não firmar compromisso algum com os considerados opressores. Mas o ativismo virtual – e o presencial – demanda de nossas lutas a interação, a construção de pontes, de redes. Não de cercas. Reconhecer o outro, percebendo que ele também passou, assim como nós, por processos de subjetivação dos papéis de gênero, é perceber nele a potência de construir conosco uma nova forma de existir que não seja tão sufocante.

Dialogar com o outro é fundamental na constituição de avanços políticos e, principalmente, no fortalecimento de nossas vozes. Nesse processo, uma vivência jamais deve negar a outra. Deveremos promover um diálogo em que a fala não seja privilégio – de ninguém. Vivências distintas precisam fazer-se ouvir e escutar. Precisamos agir para construir um ativismo feminista capaz de abraçar o dissenso e as multiplicidades, sem deslegitimar nenhum sujeito ou ridicularizá-lo.

O ativismo virtual feminista não pode rejeitar a noção de ser em construção. Beauvoir já nos disse que ninguém nasce mulher. A mulher torna-se mulher. Ninguém, igualmente, nasce homem machista. Nós não nascemos como somos hoje. E as transfeministas o sabem bem. Não se trata de dar biscoitos, a escuta é o que rompe a estagnação e nos leva ao avanço. Temos nós também que escutar. Se vão nos chamar de biscoiteiras por causa disso: que seja.

A fornada acaba de sair.

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*Helena Vieira é travesti, transfeminista, articulista e escritora.

**Sofia Favero é estudante de psicologia , travesti e administradora da Página Travesti Reflexiva