10 de outubro de 2015

Relações entre Rússia e Turquia na história


Diante da atuação militar russa na Síria, do qual muito se fala, mas nem tanto assim se tem certeza – haja vista as informações discrepantes que os diferentes veículos de mídia nos trazem –, cresce a tensão entre o Kremlin e o governo turco, sediado na capital Ancara.

Nos últimos dias a situação ganhou novos contornos diante da notícia de que jatos russos violaram o espaço aéreo turco. Rece Tayyip Erdogan, presidente turco, afirmou em resposta que “Um ataque à Turquia significa um ataque à OTAN”. Sendo membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Turquia possui o segundo maior contingente militar entre os integrantes do Tratado, estando atrás apenas dos Estados Unidos. Apenas estes dois países contam com um contingente oficial de mais de um milhão de soldados.

O Ministro da Defesa russo, Serguei Shoigu, afirmou que os SU-30 entraram brevemente no espaço aéreo turco por consequência de mal tempo, e que as medidas cabíveis para que isso não voltasse a se repetir seriam tomadas. Foi dito, também, que os devidos esclarecimentos foram prestados à Turquia diante de tal fato.

Para o Presidente turco, tais ações ameaçariam as relações positivas entre Rússia e Turquia. E tais relações se ancoram, principalmente, em fatores energéticos. A Turquia é o segundo maior importador de gás natural da Rússia na Europa depois da Alemanha. Diante das tensões entre, de um lado, a União Europeia e os Estados Unidos e, do outro, a Rússia, – além da crise econômica, a queda nos preços do petróleo e a desvalorização crescente do rublo – a importância da Turquia como importador cresceu consideravelmente, o que pede ao Kremlin cautela no trato com o governo Turco.

Turcos se aproximam de Constantinopla, pintura de Faust Zonaro
Porém, a relação entre turcos e russos vem de longa data.

Podemos estabelecer certa relação entre as nações quando estas ainda eram impérios. Após a tomada de Constantinopla pelos turcos em 1453, Moscou passou a se proclamar a única portadora da missão ortodoxa e herdeira do Império Bizantino. Tal postura fazia jus ao epíteto de “Terceira Roma” que a cidade carregava.


Nos séculos XVIII e XIX, o expansionismo do Império Russo colidiu diretamente com o expansionismo do Império Otomano, resultando em uma série de conflitos, majoritariamente vencidos pelos Russos (como a Guerra Russo-Turca entre 1828 e 1829), diante dos Otomanos cujas mostras de enfraquecimento aumentavam desde cerca de 1700. As tensões resultantes culminaram na Guerra da Crimeia (1853-1856), onde Grã-Bretanha, França e o Reino da Sardenha (com o apoio também dos austríacos) se aliaram à Turquia contra as ambições expansionistas russas. A guerra, a qual Eric Hobsbawm se refere como “massacre mal conduzido”, foi a primeira em continente europeu a usar a tática de trincheiras que seria responsável por tantas mortes e sofrimentos na Primeira Guerra Mundial aproximadamente 50 anos depois.

Cerco de Sevastopol, Guerra da Crimeia. Pintura de
Franz Roubaud
A estimativa é de que mais de 600 mil pessoas tenham perecido na Guerra da Crimeia, sendo cerca de 500 mil delas por doença: 22% das tropas inglesas, 30% das francesas e cerca de metade das russas. A derrota russa no conflito desestabilizou a imagem do império, e facilitou as conjunturas que, futuramente, culminariam na Revolução Russa. Os conflitos entre os impérios que se seguiram ajudaram a definir as fronteiras da região e foram responsáveis por um grande fluxo migratório de diferentes etnias.

Os russos foram, anos depois da Guerra da Crimeia, responsáveis por aquele que é considerado por alguns como o primeiro genocídio da era moderna, o genocídio dos Circassianos durante a Guerra Russo-Circassiana. Milhares foram sistematicamente assassinados, enquanto outros milhares morreram de fome e frio em migrações forçadas. Estima-se que os números de tal evento seriam de aproximadamente 400.000 mortos, 497.000 forçados a fugir para a Turquia e cerca de apenas 80.000 puderam permanecer em sua terra natal, no norte do Cáucaso.

Circassianos protestando contra os jogos
em Sochi (Chris Helgren/Reuters).
A Geórgia, após o conflito com a Rússia em 2008, passou a ouvir as demandas dos grupos que clamam por reconhecimento internacional do genocídio Circassiano, e em 2010 se tornou o primeiro país do mundo a reconhece-lo. O mesmo não acontece com o governo russo. As Olimpíadas de Inverno de 2014 inclusive foram sediadas na cidade de Sochi, região onde o genocídio teria ocorrido 150 anos antes, gerando revolta por parte dos grupos que clamam pelo reconhecimento. Atualmente, cerca de 5 milhões de pessoas na Turquia se identificam como descendentes de Circassianos, direta ou indiretamente.


Complicando ainda mais a situação, Armênia e Turquia, ambas aliadas da Rússia nos dias de hoje, não reconhecem seus genocídios mutuamente. Vale dizer que, se classificado como genocídio, a morte em massa dos Circassianos tomaria o lugar do genocídio armênio de primeiro da história moderna, algo que para alguns seria uma afronta, haja vista que mesmo o caso armênio sendo muito mais conhecido, ainda não é reconhecido por alguns países.

Diga-se de passagem, parte das motivações das expulsões de armênios do Império Otomano que resultaram no genocídio se deram, em parte, por conta do contexto da Primeira Guerra Mundial, onde os impérios Russo e Otomano lutavam em lados opostos. Os armênios eram encarados com grande desconfiança, sendo vistos como uma quinta coluna russa em potencial (ou mesmo ativa).

Ainda durante a Primeira Guerra Mundial, o Império Russo estabeleceu um acordo com a Grã-Bretanha e a França de dividir o Império Otomano em zonas de influência, através do acordo Sykes-Picot (que também teve participação do ministro das relações exteriores da Rússia czarista, Sergei Sazonov). Em uma carta aos embaixadores britânico e francês em São Petersburgo, Sazonov afirmava claramente que o império desejava o controle de Istambul e o leste da Anatólia, povoado majoritariamente por armênios no período. O tratado secreto foi revelado ao mundo por Vladimir Lenin e Leon Trotsky na época do Tratado Brest-Litovsk, mas aos poucos a participação russa no tratado foi suprimida.

Britânicos e Franceses tiveram papel fundamental nas divisões do território do antigo Império Otomano, guiadas principalmente pelos poços de petróleo já conhecidos na região, acabando com as esperanças da Rússia em ter seu quinhão territorial no Mar Mediterrâneo.


Logo, podemos dizer que as ambições russas por território turco em busca de ligação com o Mediterrâneo foram indiretamente responsáveis por partes da divisão do atual Oriente Médio, resultado de tensões entre o Império Russo e Otomano. E, novamente, a Rússia busca defender seus interesses no Mediterrâneo apoiando o regime de Assad de modo a manter no poder um governo que é a continuação do regime que, em 1971, assinou o tratado fornecendo a base naval de Tartus à União Soviética. Esta ainda pertence à Rússia.

Outro momento de tensão que relacionou os dois países foi a Crise dos Mísseis de 1962. A iniciativa de mandar ogivas nucleares às bases cubanas deu-se, em grande parte, ao fato de os Estados Unidos ter instalado suas ogivas na Inglaterra, Itália e Turquia, sendo esse o país mais próximo da União Soviética. O resultado disso foi a mais grave tensão da Guerra Fria, que por pouco não se tornou uma catástrofe nuclear.


Esta breve reflexão objetivou demonstrar como as relações entre estes dois países, outrora impérios, foi responsável por eventos que tiveram grande influência na história, não apenas Europeia, mas também mundial.

Leituras:
FURTADO, Peter (Org.). Histories of nations: how their identities were forged. Londres: Thames & Hudson, 2012.

GRANT, R.G. Battle: a visual journey through 5,000 years of combat. Londres; DK, 2005.

HOBSBAWM, Eric. A era do capital: 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.