11 de outubro de 2015

As crianças e a Segunda Guerra Mundial


“Compreendemos os horrores da guerra, suas leis implacáveis escritas com sangue. Mas as crianças, vidas em flor, o desabrochar do desabrochar, essas santas almas inocentes, beleza da vida (...) elas, que não fizeram mal a ninguém (...) sofrem pelos pecados dos pais (...) Fomos incapazes de protegê-las da fera. O coração sangra, e o pensamento congela de horror diante de pequenos corpos banhados de sangue, com dedos retorcidos e rostinhos deformados (...) São testemunhas mudas de sofrimentos humanos indescritíveis. Esses olhos pequenos, congelados e mortos (...) censuram a nós, os vivos.”

Cpt. Pavel Kovalenko

Diante da chegada do Dia das Crianças, elaboramos um pequeno texto sobre as consequências da Segunda Guerra Mundial para as crianças.

A extensão dos reveses que as crianças sofreram na Segunda Guerra Mundial é difícil de calcular. Alguma noção pode ser tirada de filmes, livros e séries ambientados durante a guerra, como A lista de Schindler, O menino do pijama listrado e A menina que roubava livros, além do famoso diário de Anne Frank, publicado em mais de sessenta idiomas. No entanto, a complexidade do assunto vai muito mais além.

A dedução mais lógica que podemos ter diante desse assunto é imaginar os milhões de jovens que ficaram órfãos de pai, mãe ou ambos no conflito, que destruiu famílias ao redor do mundo. Em 1945 havia aproximadamente treze milhões de crianças abandonadas como consequência da guerra; um milhão de órfãos na Polônia, 50.000 na Tchecoslováquia, 250.000 na França e 200.000 na Hungria. Na Grécia, uma em cada oito crianças era órfã. Não era incomum ver crianças marchando ao lado de regimentos por terem perdido tudo e o exército parecer a única esperança de sobrevivência.

Crianças alemãs sendo evacuadas
Há uma estimativa de que cerca de 140.000 crianças polonesas tenham sido deportadas para a URSS após a divisão da Polônia entre os soviéticos e alemães em outubro de 1939. Destas, cerca de 40.000 morreram e 85.000 nunca mais voltaram para sua terra natal.

Nas migrações em massa e fugas durante a guerra, muitas crianças pereceram diante da má nutrição ou clima. No duro inverno europeu, mães viam seus bebês morrendo de fome diante da impossibilidade de amamenta-los, já que devido a intensidade do frio, seus seios congelariam se descobertos. Muitas crianças foram dadas para adoção por pais e mães desesperados diante da provável morte de seus filhos em caso de mantê-los por perto.

Na Alemanha, país com baixa taxa de natalidade e grande número de abortos, a SS, apoiada pelo governo alemão, iniciou a Lebensborn, um programa de apoio ao nascimento de crianças que fossem consideradas “arianas puras”, mesmo de mães solteiras. Estas crianças eram posteriormente dadas para adoção para oficiais das próprias SS ou famílias também consideradas puras, de modo a ser criadas dentro dos valores da ideologia nazista.

Heinrich Himmler dirigiu um programa junto a outros segmentos da burocracia nazista onde crianças polonesas, tchecoslovacas e iugoslavas com fenótipo aceitável eram tiradas de suas famílias e avaliadas, sendo posteriormente enviadas para adoção de famílias alemãs se fossem consideradas puras ou aceitáveis, ou enviadas para campos de concentração se fossem consideradas indesejáveis, destinadas a trabalhar como escravas ou ser executadas. Este contexto causou uma situação de difícil resolução após o fim do conflito.

Crianças em Auschwitz
Apesar de cerca de 10.000 crianças (das quais aproximadamente 9.000 eram judias) terem sido salvas em 1939 do destino que tantas outras não conseguiriam escapar nos campos de extermínio, se estima que cerca de um milhão e duzentas mil de crianças judias pereceram na Solução Final. Os números de crianças judias vivendo na Europa em 1939 que sobreviveram ao conflito variam entre 6% e 11%.

Muitas crianças foram usadas como cobaias em campos como Auschwitz por cientistas e médicos ávidos por cobaias humanas. Sabe-se que o médico alemão Joseph Mengele, conhecido como “Anjo da morte”, foi responsável por brutalidades com crianças que iam da injeção de tinta azul nos olhos das mesmas na tentativa de mudar suas cores à ligação cirúrgica de gêmeos, na tentativa de criar gêmeos siameses artificialmente.

Outras crianças viraram alvo da ideologia nazista. Adolescentes alemães negros foram esterilizados, crianças deficientes sofreram eutanásia, crianças da etnia Romani (ou ciganas) foram mortas com suas famílias e crianças, especialmente polonesas e soviéticas, foram enviadas para trabalhar como escravas em campos de trabalho para fazendas e indústrias.
Estátua do Pequeno Insurgente, Varsóvia
           
Em países onde a catástrofe da guerra fora mais extrema, a participação das crianças foi mais ativa, inclusive em combate.

Na União Soviética, já em 1941, crianças patrulhavam as ruas no início da noite para avisar a população de possíveis ameaças. Elas eram também colocadas para trabalhar mantendo sacos de areia e baldes de água cheios durante ataques incendiários às cidades, e em locais mais afastados ocupados pelos alemães, eram comumente usadas por guerrilheiros para missões de reconhecimento.

Crianças com uma média de idade de dez a quatorze anos foram empregadas diretamente em combate em diferentes países, normalmente por guerrilheiros ou resistências clandestinas. Em Varsóvia, durante o levante de 1944, homens, mulheres e crianças lutaram pelo Armia Krajova contra os nazistas até o levante ser suprimido. Hoje, em Varsóvia, é possível encontrar um monumento ao “Pequeno insurgente”, homenageando as crianças que lutaram no levante, e sendo inspirada no garoto de codinome Antek, que morreu lutando no conflito aos treze anos de idade.

Hitler condecorando soldados da Juventude Hitlerista com
a Cruz de Ferro.
Em 1945, cerca de cinco mil jovens (alguns de até doze anos) pertencentes à Juventude Hitlerista lutaram contra os soviéticos durante a Batalha de Berlim, tendo apenas 10% destes sobrevivido. Em Okinawa, crianças foram mandadas para o combate contra os Aliados, muitas vezes armadas apenas com uma espada.

Além da morte em combate, muitas viram seu fim em ataques aéreos. Os bombardeios aliados de julho de 1943 em Hamburgo foram responsáveis pela morte de 5.586 crianças, e um número impossível de se estimar pereceu nos bombardeios nucleares de Hiroshima e Nagasaki. Das que sobreviveram aos dois ataques nucleares de agosto de 1945, muitas morreram posteriormente pelos efeitos da radiação, e cerca de trinta e três cujas mães estavam grávidas no momento nasceram com microcefalia.

Criança londrina após um bombardeio
Muitas crianças foram evacuadas de suas cidades em diferentes países, por vezes sendo enviadas a outras nações (como as cerca de 64.000 crianças finlandesas enviadas para a Suécia). Em alguns casos, por conta da desorganização oriunda do desespero, estas nunca mais conseguiram reencontrar suas famílias ou voltaram para casa. Destes países, o que mais empreendeu a evacuação de cidadãos foi a Grã-Bretanha. Cerca de quatro milhões de adultos e crianças foram evacuados para cidades menores e zonas rurais, e outros dois milhões evacuaram por conta própria.

Os números de delinquência juvenil nas grandes cidades aumentaram consideravelmente. Alguns grupos de jovens, no entanto, engajavam seus atos dentro de posturas de resistência, como os Edelweißpiraten (ou Piratas de Edelweiss), um grupo formado por crianças e adolescentes que escapavam de fazer parte da Juventude Hitlerista por evasão escolar e ainda não tinha idade de entrar para o exército. Estes agrediam membros da Juventude Hitlerista, cantavam músicas antinazistas, faziam pichações contra Hitler e até mesmo ajudavam desertores quando podiam.


A despeito do baby boom ocorrido em algumas regiões, a catástrofe demográfica da guerra para alguns países levou anos para ser revertida ou controlada. Em guerras e catástrofes subsequentes, imagens do sofrimento de crianças causaram grande comoção mundial, e tiveram importante papel de conscientização popular. Elas são o lembrete de que conflitos, sejam eles extensão da política (como afirmava Clausewitz) ou não necessariamente isso (como defende John Keegan), são responsáveis pela perda da inocência de um incalculável número de crianças mundo afora.

Leituras:
BARTOV, O.; GROSSMANN, A.; NOLAN, M. Crimes de Guerra: culpa e negação no século XX. Rio de Janeiro: Difel, 2005.

BEEVOR, Antony. Berlim 1945: a queda. 9ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2011.

DAVIES, Norman. O levante de 44: a batalha por Varsóvia. Rio de Janeiro: Record, 2006.

FEHRENBACH, Heide. "War orphans and postfascist families: kinship and belonging after 1945". In: BIESS, Frank; MOELLER, Robert G. Histories of the aftermath: the legacies of the Second World War in Europe. Nova York: Berghahn Books, 2010.

HACKETT, David A. (org). O relatório Buchenwald. Rio de Janeiro: Record, 1998.

HASTINGS, Max. Inferno: o mundo em guerra 1939-1945. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012.

I.C.B. Dear and M.R.D. Foot, (org) The Oxford Companion to World War II. New York: Oxford University Press, 1995.

KERSHAW, Ian. O fim do Terceiro Reich: a destruição da Alemanha de Hitler, 1944-1945. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.