“Compreendemos os horrores da guerra, suas leis implacáveis escritas
com sangue. Mas as crianças, vidas em flor, o desabrochar do desabrochar, essas
santas almas inocentes, beleza da vida (...) elas, que não fizeram mal a
ninguém (...) sofrem pelos pecados dos pais (...) Fomos incapazes de
protegê-las da fera. O coração sangra, e o pensamento congela de horror diante
de pequenos corpos banhados de sangue, com dedos retorcidos e rostinhos
deformados (...) São testemunhas mudas de sofrimentos humanos indescritíveis.
Esses olhos pequenos, congelados e mortos (...) censuram a nós, os vivos.”
Cpt. Pavel Kovalenko
Diante da
chegada do Dia das Crianças, elaboramos um pequeno texto sobre as consequências
da Segunda Guerra Mundial para as crianças.
A extensão dos
reveses que as crianças sofreram na Segunda Guerra Mundial é difícil de
calcular. Alguma noção pode ser tirada de filmes, livros e séries ambientados
durante a guerra, como A lista de
Schindler, O menino do pijama
listrado e A menina que roubava
livros, além do famoso diário de Anne Frank, publicado em mais de sessenta
idiomas. No entanto, a complexidade do assunto vai muito mais além.
A dedução mais
lógica que podemos ter diante desse assunto é imaginar os milhões de jovens que
ficaram órfãos de pai, mãe ou ambos no conflito, que destruiu famílias ao redor
do mundo. Em 1945 havia aproximadamente treze milhões de crianças abandonadas
como consequência da guerra; um milhão de órfãos na Polônia, 50.000 na
Tchecoslováquia, 250.000 na França e 200.000 na Hungria. Na Grécia, uma em cada
oito crianças era órfã. Não era incomum ver crianças marchando ao lado de
regimentos por terem perdido tudo e o exército parecer a única esperança de
sobrevivência.
Crianças alemãs sendo evacuadas |
Há uma
estimativa de que cerca de 140.000 crianças polonesas tenham sido deportadas
para a URSS após a divisão da Polônia entre os soviéticos e alemães em outubro
de 1939. Destas, cerca de 40.000 morreram e 85.000 nunca mais voltaram para sua
terra natal.
Nas migrações
em massa e fugas durante a guerra, muitas crianças pereceram diante da má
nutrição ou clima. No duro inverno europeu, mães viam seus bebês morrendo de
fome diante da impossibilidade de amamenta-los, já que devido a intensidade do
frio, seus seios congelariam se descobertos. Muitas crianças foram dadas para
adoção por pais e mães desesperados diante da provável morte de seus filhos em
caso de mantê-los por perto.
Na Alemanha,
país com baixa taxa de natalidade e grande número de abortos, a SS, apoiada
pelo governo alemão, iniciou a Lebensborn,
um programa de apoio ao nascimento de crianças que fossem consideradas “arianas
puras”, mesmo de mães solteiras. Estas crianças eram posteriormente dadas para
adoção para oficiais das próprias SS ou famílias também consideradas puras, de
modo a ser criadas dentro dos valores da ideologia nazista.
Heinrich Himmler
dirigiu um programa junto a outros segmentos da burocracia nazista onde
crianças polonesas, tchecoslovacas e iugoslavas com fenótipo aceitável eram tiradas
de suas famílias e avaliadas, sendo posteriormente enviadas para adoção de
famílias alemãs se fossem consideradas puras ou aceitáveis, ou enviadas para
campos de concentração se fossem consideradas indesejáveis, destinadas a
trabalhar como escravas ou ser executadas. Este contexto causou uma situação de
difícil resolução após o fim do conflito.
Crianças em Auschwitz |
Apesar de
cerca de 10.000 crianças (das quais aproximadamente 9.000 eram judias) terem
sido salvas em 1939 do destino que tantas outras não conseguiriam escapar nos
campos de extermínio, se estima que cerca de um milhão e duzentas mil de
crianças judias pereceram na Solução Final. Os números de crianças judias
vivendo na Europa em 1939 que sobreviveram ao conflito variam entre 6% e 11%.
Muitas
crianças foram usadas como cobaias em campos como Auschwitz por cientistas e
médicos ávidos por cobaias humanas. Sabe-se que o médico alemão Joseph Mengele,
conhecido como “Anjo da morte”, foi responsável por brutalidades com crianças
que iam da injeção de tinta azul nos olhos das mesmas na tentativa de mudar
suas cores à ligação cirúrgica de gêmeos, na tentativa de criar gêmeos siameses
artificialmente.
Outras
crianças viraram alvo da ideologia nazista. Adolescentes alemães negros foram
esterilizados, crianças deficientes sofreram eutanásia, crianças da etnia Romani
(ou ciganas) foram mortas com suas famílias e crianças, especialmente polonesas
e soviéticas, foram enviadas para trabalhar como escravas em campos de trabalho
para fazendas e indústrias.
Estátua do Pequeno Insurgente, Varsóvia |
Em países onde
a catástrofe da guerra fora mais extrema, a participação das crianças foi mais ativa,
inclusive em combate.
Na União
Soviética, já em 1941, crianças patrulhavam as ruas no início da noite para
avisar a população de possíveis ameaças. Elas eram também colocadas para
trabalhar mantendo sacos de areia e baldes de água cheios durante ataques
incendiários às cidades, e em locais mais afastados ocupados pelos alemães,
eram comumente usadas por guerrilheiros para missões de reconhecimento.
Crianças com
uma média de idade de dez a quatorze anos foram empregadas diretamente em
combate em diferentes países, normalmente por guerrilheiros ou resistências
clandestinas. Em Varsóvia, durante o levante de 1944, homens, mulheres e
crianças lutaram pelo Armia Krajova
contra os nazistas até o levante ser suprimido. Hoje, em Varsóvia, é possível
encontrar um monumento ao “Pequeno insurgente”, homenageando as crianças que
lutaram no levante, e sendo inspirada no garoto de codinome Antek, que morreu
lutando no conflito aos treze anos de idade.
Hitler condecorando soldados da Juventude Hitlerista com a Cruz de Ferro. |
Em 1945, cerca
de cinco mil jovens (alguns de até doze anos) pertencentes à Juventude
Hitlerista lutaram contra os soviéticos durante a Batalha de Berlim, tendo
apenas 10% destes sobrevivido. Em Okinawa, crianças foram mandadas para o
combate contra os Aliados, muitas vezes armadas apenas com uma espada.
Além da morte
em combate, muitas viram seu fim em ataques aéreos. Os bombardeios aliados de
julho de 1943 em Hamburgo foram responsáveis pela morte de 5.586 crianças, e um
número impossível de se estimar pereceu nos bombardeios nucleares de Hiroshima
e Nagasaki. Das que sobreviveram aos dois ataques nucleares de agosto de 1945,
muitas morreram posteriormente pelos efeitos da radiação, e cerca de trinta e
três cujas mães estavam grávidas no momento nasceram com microcefalia.
Criança londrina após um bombardeio |
Muitas
crianças foram evacuadas de suas cidades em diferentes países, por vezes sendo enviadas a outras nações (como as cerca de 64.000 crianças finlandesas enviadas
para a Suécia). Em alguns casos, por conta da desorganização oriunda do
desespero, estas nunca mais conseguiram reencontrar suas famílias ou voltaram
para casa. Destes países, o que mais empreendeu a evacuação de cidadãos foi a
Grã-Bretanha. Cerca de quatro milhões de adultos e crianças foram evacuados
para cidades menores e zonas rurais, e outros dois milhões evacuaram por conta
própria.
Os números de
delinquência juvenil nas grandes cidades aumentaram consideravelmente. Alguns
grupos de jovens, no entanto, engajavam seus atos dentro de posturas de resistência,
como os Edelweißpiraten (ou Piratas
de Edelweiss), um grupo formado por crianças e adolescentes que escapavam de
fazer parte da Juventude Hitlerista por evasão escolar e ainda não tinha idade
de entrar para o exército. Estes agrediam membros da Juventude Hitlerista,
cantavam músicas antinazistas, faziam pichações contra Hitler e até mesmo
ajudavam desertores quando podiam.
A despeito do baby boom ocorrido em algumas regiões, a
catástrofe demográfica da guerra para alguns países levou anos para ser
revertida ou controlada. Em guerras e catástrofes subsequentes, imagens do
sofrimento de crianças causaram grande comoção mundial, e tiveram importante
papel de conscientização popular. Elas são o lembrete de que conflitos, sejam
eles extensão da política (como afirmava Clausewitz) ou não necessariamente
isso (como defende John Keegan), são responsáveis pela perda da inocência de um
incalculável número de crianças mundo afora.
Leituras:
BARTOV, O.; GROSSMANN, A.; NOLAN, M. Crimes de Guerra: culpa e negação no século XX. Rio de Janeiro:
Difel, 2005.
BEEVOR, Antony. Berlim
1945: a queda. 9ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2011.
DAVIES, Norman. O
levante de 44: a batalha por Varsóvia. Rio de Janeiro: Record, 2006.
FEHRENBACH, Heide. "War
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Frank; MOELLER, Robert G. Histories of
the aftermath: the legacies of the Second World War in Europe. Nova York: Berghahn
Books, 2010.
HACKETT, David A. (org). O relatório Buchenwald. Rio de Janeiro: Record, 1998.
HASTINGS,
Max. Inferno: o mundo em guerra
1939-1945. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012.
I.C.B. Dear and M.R.D. Foot, (org) The Oxford Companion to World War II.
New York: Oxford University Press,
1995.
KERSHAW,
Ian. O fim do Terceiro Reich: a
destruição da Alemanha de Hitler, 1944-1945. São Paulo: Companhia das Letras,
2015.