3 de outubro de 2015

A venda do Alaska pela Rússia para os EUA: a perspectiva do governo imperial russo

Quando eu estudava, ainda na graduação, o expansionismo dos EUA rumo ao oeste, me chamou a atenção em especial a compra do Alaska. Até então parte da Rússia czarista, o território foi vendido em 1867 por meros $ 7.2 milhões, uma quantia irrisória (aproximadamente dois centavos por acre).

Minha reação imediata àquela informação foi de indignação. Influenciado por leituras como “Enterrem meu coração na curva do rio”, de Dee Brown, tudo o que tinha relação com o estabelecimento dos territórios pertencentes aos EUA como se configuram nos dias de hoje parecia um grande absurdo.

Contudo, quando se trata de história, política e relações internacionais, os eventos são sempre mais complexos do que aparentam à primeira vista.

No século XIX, o Alaska era um centro de comércio internacional. Sua capital, Novoarkhangelsk (atualmente a cidade de Sitka), diferentes produtos eram comercializados, desde tecidos chineses a chá e gelo (comercializado principalmente com o sul dos Estados Unidos). A região era também proeminente na construção de navios e mineração de carvão, e já se sabia dos depósitos de ouro da região.

Os mercadores russos se dirigiam até a região em busca de marfim de morsa e peles de lontras, que eram adquiridas através de trocas com os povos nativos da região, e estas trocas eram feitas pela Russian-American Company (RAC). A companhia, iniciada por aventureiros no século XVIII, controlava todas as minas e minérios do Alaska, e tinha a prerrogativa de entrar em negociações independentemente com quaisquer países, tendo inclusive sua própria bandeira, privilégios estes concedidos pelo governo imperial russo. Além do governo coletar um grande montante em impostos da RAC, o czar e membros de sua família estavam entre os acionistas da empresa.

O principal líder dos assentamentos russos na América era o mercador Alexander Baranov. Responsável pela construção de escolas, fábricas, fortes e estaleiros navais, ensinou os nativos a plantar batatas e rutabagas[1] e foi o responsável pela expansão do comércio de pele de lontras na região. Baranov chamava a si mesmo de “Pizarro russo” e caso com a filha de um chefe Aleut (um dos grupos nativos da região).
Ratificação do tratado de venda do Alaska
pelo Império Russo. Fonte:
https://research.archives.gov/id/299810

Quando Baranov deixou de lado sua participação na RAC, foi substituído pelo Tenente-Capitão Hagemeister, que trouxe consigo novos empregados e sócios oriundos de círculos militares. Foi instituído, então, que apenas oficiais da marinha poderiam liderara a companhia. Era o começo da ruína da empresa.

Os novos líderes da RAC estabeleceram salários astronômicos para si mesmos; oficiais comuns passaram a receber 1,500 rublos por ano (equivalente ao salário de ministros e senadores) enquanto o líder da companhia recebia 150.000 rublos. Estes forçaram os nativos a venderem as peles de lontras por metade do preço, fazendo com que a matança de lontra por parte dos Esquimós e Aleuts atingisse níveis catastróficos. Nos vinte anos seguintes, quase todas as lontras foram mortas, privando o Alaska de sua fonte de comércio mais lucrativa. O subsequente sofrimento dos nativos diante da escassez resultou em planos de revolta contra os russos, suprimidos através de intimidação mediante o bombardeio de vilas na costa por navios da marinha.

Os oficiais passaram a buscar outras fontes de lucro, apelando para o comércio de gelo e chá, mas este não foi o bastante para salvar a companhia (levando em conta nesta equação que a diminuição de salários não estava em debate), mesmo com posteriores subsídios estatais.

Ratificação do tratado pelos
Estados Unidos. Fonte:
http://memory.loc.gov/cgi-bin/ampage?
collId=llej&fileName=017/
llej017.db&recNum=248
Eis que a Guerra da Criméia se iniciou, colocando a Rússia diante de Grã-Bretanha, França e Turquia. Dentro desse contexto, a Rússia não teria condições de suprir ou defender o Alaska – as rotas marítimas eram controladas pelos navios aliados. Até mesmo a projeção de extração de ouro da região foi comprometida, diante do medo que os britânicos pudessem bloquear o Alaska e tomar a região para si, deixando os russos sem nada.

As tensões entre Moscou e Londres cresciam, e nesse contexto surgiu a ideia da venda do Alaska, tanto autoridades dos Estados Unidos quanto da Rússia. O enviado russo a Washington, o Bartão Eduardo de Stoeckl, iniciou as primeiras conversas com o Secretário de Estado, Willian Seward a favor do czar Alexandre II.

No início, a opinião pública em ambos os países era completamente contrária à negociação. Os jornais russos escreviam sobre o absurdo que seria desistir de uma região onde foram investidos tantos esforços e recursos, que já contava com telégrafo e onde já se sabia dos ricos depósitos de ouro. Já a imprensa estadunidense se queixava sobre a necessidade de uma “caixa de gelo” e 50,000 esquimós selvagens que “bebiam óleo de peixe no café da manhã”. O próprio Congresso dos EUA era contra a compra da região.

No entanto, em 30 de março de 1867 em Washington D.C., os partidos assinaram o acordo que previa a venda de 1.5 milhões de hectares de terra russos na América por $ 7.2 milhões, o equivalente a dois centavos por acre (ou $ 4.74 por quilômetro quadrado). Tal soma era considerada puramente simbólica, mas a situação era crítica: mantendo o território, os russos corriam o risco de não receber nem mesmo aquela quantia e ainda perder o território para os Britânicos.
Cheque de pagamento pela compra do Alaska.
Fonte: http://www.vrot.su/archives/96

Os russos da região que se recusaram a receber cidadania estadunidense foram embora, e pouco tempo depois se iniciou a corrida do ouro na “caixa de gelo”, um insulto para os russos que não se conformavam com o negócio. Mesmo hoje algumas pessoas dentro e fora da Rússia não conseguem se conformar com um negócio que, mesmo na época, parecia tão desvantajoso e rendeu aos Estados Unidos centenas de milhares de dólares. Contudo, dentro de seu contexto particular, a transação adquire tons de cinza que deixam de lado o maniqueísmo que costuma permear as discussões sobre este tipo de assunto.

A maior parte deste artigo é uma tradução livre de um artigo publicado no site “Russia beyond the headlines”, que pode ser acessado AQUI





[1] Planta híbrida resultante do cruzamento da couve com o nabo, cuja grossa raiz, forrageira, se presta, quando nova, ao consumo pelo homem. Não encontrei um nome em português equivalente para a planta.