MAXIMIANO, Cesar C. Barbudos, sujos e fatigados: soldados
brasileiros na Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Grua, 2010.
O ano de 2014 tem sido
pródigo para os historiadores brasileiros interessados em história militar,
mais precisamente a respeito da Primeira e Segunda Guerra Mundial, dado o
número de livros que abarcam os conflitos (em sua “totalidade”, dentro do que é
possível classificar dessa forma, ou eventos particulares) que estão sendo lançados
nos últimos anos.
A proeminência de
traduções e lançamentos no Brasil se dá, em parte, pela tendência comum de se
rememorar de certos eventos quando o tempo decorrido destes até o presente atinge
datas arredondadas; em 2014, completaram-se cem anos do início da Primeira
Guerra Mundial, setenta anos da Operação Overlord e do fim do cerco de Leningrado, setenta anos do Levante de Varsóvia, setenta e cinco anos da
invasão alemã à Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial, entre tantos
outros eventos. Para nós brasileiros, há também algo a ser relembrado: há
setenta anos que cerca de vinte e cinco mil soldados brasileiros foram enviados
para a Itália, destinados a lutar ao lado dos aliados (mais precisamente dos
Estados Unidos), compondo a Força Expedicionária Brasileira.
A jornada da FEB na
Itália vem ganhando algum destaque, ainda que tímido, em livros, séries,
músicas e filmes. Podemos citar, respectivamente, o livro de João Barone,
baterista da banda Paralamas do Sucesso e filho de um veterano da FEB, 1942: o Brasil e sua guerra quase
desconhecida, o documentário Caminho
dos Heróis, veiculado pelo canal History Channel no Brasil (com
participação do mesmo João Barone), a música Smokin’ Snakes da banda sueca Sabaton, cujo tema foi enviado à
banda por um fã brasileiro e A estrada 47,
filme vencedor do Festival de Gramado na categoria de melhor longa-metragem
brasileiro neste mesmo ano de 2014, representando soldados brasileiros responsáveis
por desarmar um campo minado durante o duro inverno italiano. Isso sem contar a série feita para a internet chamada Heróis, dirigida por Guto Aeraphe e o curta metragem, também disponível na internet Esperança, dirigido por Nathan Cragun,
Lançado em 2010 pela
Editora Grua, o livro de Cesar Campiani Maximiano é uma das mais completas obras
sobre o assunto disponível no mercado. Ancorada em um grande número de
entrevistas com veteranos da FEB, obras de memórias escritas por tantos outros
no passar dos anos, artigos, documentação tanto no Brasil como no exterior, é
uma pesquisa aprofundada que tem como um dos méritos fazer a justa ponte entre
as memórias dos veteranos e as discussões historiográficas acerca da relação
entre história e memória presentes na academia. Ainda que grandes nomes de
autores que tralham com tal relação não sejam citados no decorrer do texto como
Maurice Halbwachs, Michel Pollak, Jacques LeGoff, entre outros, muitas das
principais lições sobre as armadilhas da memória e da história oral são
colocadas em debate, confrontando os testemunhos e estabelecendo hipóteses
plausíveis, num trabalho coeso e responsável.
O autor, em
determinados pontos, rejeita claramente perspectivas tradicionalmente vinculadas
à esquerda marxista, como a proposição de que as duas grandes guerras (nesse
caso, especificamente a segunda) foram resultado do ímpeto imperialista das
potências europeias. Entretanto, sobre essa afirmação em particular, o autor
afirma ser ela um argumento de quem “parou de ler da década de 1970”,
afirmando, ao invés disso, que a Segunda Guerra Mundial fora uma luta contra o
Fascismo. Tal interpretação, no entanto, não apenas não da conta de todas as
nuances e complexidades de um conflito e escala global de cerca de seis anos,
como é a típica explicação “senso comum”, usada inclusive como propaganda de
guerra. Se não está totalmente equivocada, falta-lhe muito para sequer começar
a dar respostas satisfatórias.
Apesar disso, a
qualidade do trabalho em geral não é comprometida, e as escolhas que justificam
as divisões do capítulo se mostram muito efetivas, impedindo a sensação de “mais
do mesmo” que alguns livros podem trazer quando aparentemente se repetem em
demasia.
No início do livro,
Cesar se preocupa em dar um panorama do período de mobilização da FEB, sobre as
expectativas do governo Vargas e a realidade das condições de mobilização; a
origem dos convocados, particularidades sobre os voluntários, esboços de ideias
sobre as intenções do governo de Getúlio, entre outros assuntos relativos são
abordados nesta primeira parte, dando ênfase à ideia predominante entre os
militares (que reaparece em outros pontos do livro) de que o governo não
desejava um exército forte e bem quisto que pudesse, de alguma maneira, afetar
sua legitimidade. Há de se levar em conta que o senso comum e a propaganda de
guerra afirmavam ser aquela uma guerra contra regimes autoritários, nada muito
diferente do que se mostraria o Estado Novo. Logo, qual o sentido de derrubar o
autoritarismo no exterior enquanto em sua própria casa tudo permanecia igual?
Essa reflexão até hoje pauta os relatos de veteranos sobre a desmobilização a
FEB, quando ainda em solo europeu.
Outros capítulos
abordam a penúria da linha de frente. A vivência nos foxholes, (trincheiras improvisadas onde os soldados poderiam
passar horas ou mesmo dias sob as intempéries do clima e a iminência da morte),
os combates viscerais que nada se assemelham a filmes e séries, a falta de
alimentação e vestuário adequados, a ineficiência dos serviços postais, o clima
diametralmente oposto ao que a maioria dos soldados estava acostumado no
período de inverno, tudo é apresentado de forma nada romantizada, sem tentar
levantar os soldados à categoria de seres superiores e intocáveis, mas fazendo
questão de ressaltar os sacrifícios e as privações dos praças no cumprimento de
seu dever.
Não há espaço para glória
na narrativa de Maximiano, o que não quer dizer que não haja profundo respeito.
O autor tenta não tomar versões de histórias como certezas, busca em fontes
diversas, que vão de relatos a poesias e músicas, trazer vislumbres do cotidiano
dos membros da FEB. É também prodigioso ao ressaltar as prováveis razões pelo
qual a campanha fora ridicularizada pelos próprios brasileiros que viam os
pracinhas como lutadores de um front sem importância, ou que estavam na Europa
apenas a passeio, dada a abundância de fotos em cidades italianas e a ausência
de fotos de combate, por exemplo. Claro, ignorando que a FEB não contava com
fotógrafos na linha de frente, como os soldados aliados tinham ao seu lado na
Operação Overlord em seis de junho de
1944.
Aliás, no que concerne
aos aliados, ganha grande destaque o apoio que o exército dos Estados Unidos
deu à FEB, não apenas no que tange às relações pessoais, mas principalmente no
aspecto material. Roupas adequadas para o clima do norte da Itália (para suprir
a falta desse material vinda do próprio exército brasileiro, ou por falta, ou
por negligência), melhor alimentação, fumo, etc. O contato com este exército
causou forte impressão no Exército Brasileiro, principalmente nos soldados
rasos. Até hoje muitos veteranos veem os EUA como uma “nação irmã” ou mesmo “segunda
pátria” graças às experiências no front.
Os últimos capítulos se
dedicam a apresentar quais eram os relatos feitos sobre a FEB dentro e fora do
Brasil, os boatos que se espalhavam sobre a campanha e a relação por vezes
conturbada entre oficiais e soldados, que eram tratados de forma muito mais
autoritária e agressiva que os conscritos do exército dos Estados Unidos.
Maximiano se esforça em compreender esta diferença de tratamento de forma
contextualizada, assim como as relações entre diferentes etnias. O autor até
mesmo infere que o impacto positivo que a integração étnica da FEB teve no
exército dos EUA (onde a segregação racial era fortíssima, reflexo da
segregação na própria sociedade civil) teria exercido alguma influência nos
movimentos pelos direitos civis dos negros nas décadas de 1950 e 1960,
explicando de forma convincente o que o leva a pensar desta forma.
O livro de Cesar
Maximiano, embora apresente um ou outro ponto de forma superficial, é uma
leitura obrigatória para quem quer conhecer mais profundamente a campanha da
FEB na Segunda Guerra Mundial. A FEB de Maximiano está longe das glórias de
guerra que a indústria cultural nos apresenta carregadas, por vezes, de
chauvinismo cego e sacrifícios vãos, mas também está longe da covardia, dos
golpes de capoeira, do jeitinho brasileiro e da irrelevância que, em geral, os
brasileiros viram e ainda veem nos soldados brasileiros que lá estiveram e que
tanto sofreram. Um capítulo de nossa história que aos poucos adquire o merecido
respeito.
Preço
médio: R$ 50,00