1 de setembro de 2014

Cesar Campiani Maximiano - Barbudos, sujos e fatigados

MAXIMIANO, Cesar C. Barbudos, sujos e fatigados: soldados brasileiros na Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Grua, 2010.

O ano de 2014 tem sido pródigo para os historiadores brasileiros interessados em história militar, mais precisamente a respeito da Primeira e Segunda Guerra Mundial, dado o número de livros que abarcam os conflitos (em sua “totalidade”, dentro do que é possível classificar dessa forma, ou eventos particulares) que estão sendo lançados nos últimos anos.

A proeminência de traduções e lançamentos no Brasil se dá, em parte, pela tendência comum de se rememorar de certos eventos quando o tempo decorrido destes até o presente atinge datas arredondadas; em 2014, completaram-se cem anos do início da Primeira Guerra Mundial, setenta anos da Operação Overlord e do fim do cerco de Leningrado, setenta anos do Levante de Varsóvia, setenta e cinco anos da invasão alemã à Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial, entre tantos outros eventos. Para nós brasileiros, há também algo a ser relembrado: há setenta anos que cerca de vinte e cinco mil soldados brasileiros foram enviados para a Itália, destinados a lutar ao lado dos aliados (mais precisamente dos Estados Unidos), compondo a Força Expedicionária Brasileira.

A jornada da FEB na Itália vem ganhando algum destaque, ainda que tímido, em livros, séries, músicas e filmes. Podemos citar, respectivamente, o livro de João Barone, baterista da banda Paralamas do Sucesso e filho de um veterano da FEB, 1942: o Brasil e sua guerra quase desconhecida, o documentário Caminho dos Heróis, veiculado pelo canal History Channel no Brasil (com participação do mesmo João Barone), a música Smokin’ Snakes da banda sueca Sabaton, cujo tema foi enviado à banda por um fã brasileiro e A estrada 47, filme vencedor do Festival de Gramado na categoria de melhor longa-metragem brasileiro neste mesmo ano de 2014, representando soldados brasileiros responsáveis por desarmar um campo minado durante o duro inverno italiano. Isso sem contar a série feita para a internet chamada Heróis, dirigida por Guto Aeraphe e o curta metragem, também disponível na internet Esperança, dirigido por Nathan Cragun,

Lançado em 2010 pela Editora Grua, o livro de Cesar Campiani Maximiano é uma das mais completas obras sobre o assunto disponível no mercado. Ancorada em um grande número de entrevistas com veteranos da FEB, obras de memórias escritas por tantos outros no passar dos anos, artigos, documentação tanto no Brasil como no exterior, é uma pesquisa aprofundada que tem como um dos méritos fazer a justa ponte entre as memórias dos veteranos e as discussões historiográficas acerca da relação entre história e memória presentes na academia. Ainda que grandes nomes de autores que tralham com tal relação não sejam citados no decorrer do texto como Maurice Halbwachs, Michel Pollak, Jacques LeGoff, entre outros, muitas das principais lições sobre as armadilhas da memória e da história oral são colocadas em debate, confrontando os testemunhos e estabelecendo hipóteses plausíveis, num trabalho coeso e responsável.

O autor, em determinados pontos, rejeita claramente perspectivas tradicionalmente vinculadas à esquerda marxista, como a proposição de que as duas grandes guerras (nesse caso, especificamente a segunda) foram resultado do ímpeto imperialista das potências europeias. Entretanto, sobre essa afirmação em particular, o autor afirma ser ela um argumento de quem “parou de ler da década de 1970”, afirmando, ao invés disso, que a Segunda Guerra Mundial fora uma luta contra o Fascismo. Tal interpretação, no entanto, não apenas não da conta de todas as nuances e complexidades de um conflito e escala global de cerca de seis anos, como é a típica explicação “senso comum”, usada inclusive como propaganda de guerra. Se não está totalmente equivocada, falta-lhe muito para sequer começar a dar respostas satisfatórias.

Apesar disso, a qualidade do trabalho em geral não é comprometida, e as escolhas que justificam as divisões do capítulo se mostram muito efetivas, impedindo a sensação de “mais do mesmo” que alguns livros podem trazer quando aparentemente se repetem em demasia.

No início do livro, Cesar se preocupa em dar um panorama do período de mobilização da FEB, sobre as expectativas do governo Vargas e a realidade das condições de mobilização; a origem dos convocados, particularidades sobre os voluntários, esboços de ideias sobre as intenções do governo de Getúlio, entre outros assuntos relativos são abordados nesta primeira parte, dando ênfase à ideia predominante entre os militares (que reaparece em outros pontos do livro) de que o governo não desejava um exército forte e bem quisto que pudesse, de alguma maneira, afetar sua legitimidade. Há de se levar em conta que o senso comum e a propaganda de guerra afirmavam ser aquela uma guerra contra regimes autoritários, nada muito diferente do que se mostraria o Estado Novo. Logo, qual o sentido de derrubar o autoritarismo no exterior enquanto em sua própria casa tudo permanecia igual? Essa reflexão até hoje pauta os relatos de veteranos sobre a desmobilização a FEB, quando ainda em solo europeu.

Outros capítulos abordam a penúria da linha de frente. A vivência nos foxholes, (trincheiras improvisadas onde os soldados poderiam passar horas ou mesmo dias sob as intempéries do clima e a iminência da morte), os combates viscerais que nada se assemelham a filmes e séries, a falta de alimentação e vestuário adequados, a ineficiência dos serviços postais, o clima diametralmente oposto ao que a maioria dos soldados estava acostumado no período de inverno, tudo é apresentado de forma nada romantizada, sem tentar levantar os soldados à categoria de seres superiores e intocáveis, mas fazendo questão de ressaltar os sacrifícios e as privações dos praças no cumprimento de seu dever.

Não há espaço para glória na narrativa de Maximiano, o que não quer dizer que não haja profundo respeito. O autor tenta não tomar versões de histórias como certezas, busca em fontes diversas, que vão de relatos a poesias e músicas, trazer vislumbres do cotidiano dos membros da FEB. É também prodigioso ao ressaltar as prováveis razões pelo qual a campanha fora ridicularizada pelos próprios brasileiros que viam os pracinhas como lutadores de um front sem importância, ou que estavam na Europa apenas a passeio, dada a abundância de fotos em cidades italianas e a ausência de fotos de combate, por exemplo. Claro, ignorando que a FEB não contava com fotógrafos na linha de frente, como os soldados aliados tinham ao seu lado na Operação Overlord em seis de junho de 1944.

Aliás, no que concerne aos aliados, ganha grande destaque o apoio que o exército dos Estados Unidos deu à FEB, não apenas no que tange às relações pessoais, mas principalmente no aspecto material. Roupas adequadas para o clima do norte da Itália (para suprir a falta desse material vinda do próprio exército brasileiro, ou por falta, ou por negligência), melhor alimentação, fumo, etc. O contato com este exército causou forte impressão no Exército Brasileiro, principalmente nos soldados rasos. Até hoje muitos veteranos veem os EUA como uma “nação irmã” ou mesmo “segunda pátria” graças às experiências no front.

Os últimos capítulos se dedicam a apresentar quais eram os relatos feitos sobre a FEB dentro e fora do Brasil, os boatos que se espalhavam sobre a campanha e a relação por vezes conturbada entre oficiais e soldados, que eram tratados de forma muito mais autoritária e agressiva que os conscritos do exército dos Estados Unidos. Maximiano se esforça em compreender esta diferença de tratamento de forma contextualizada, assim como as relações entre diferentes etnias. O autor até mesmo infere que o impacto positivo que a integração étnica da FEB teve no exército dos EUA (onde a segregação racial era fortíssima, reflexo da segregação na própria sociedade civil) teria exercido alguma influência nos movimentos pelos direitos civis dos negros nas décadas de 1950 e 1960, explicando de forma convincente o que o leva a pensar desta forma.

O livro de Cesar Maximiano, embora apresente um ou outro ponto de forma superficial, é uma leitura obrigatória para quem quer conhecer mais profundamente a campanha da FEB na Segunda Guerra Mundial. A FEB de Maximiano está longe das glórias de guerra que a indústria cultural nos apresenta carregadas, por vezes, de chauvinismo cego e sacrifícios vãos, mas também está longe da covardia, dos golpes de capoeira, do jeitinho brasileiro e da irrelevância que, em geral, os brasileiros viram e ainda veem nos soldados brasileiros que lá estiveram e que tanto sofreram. Um capítulo de nossa história que aos poucos adquire o merecido respeito.


Preço médio: R$ 50,00