6 de fevereiro de 2015

Norman Davies - O levante de 44: a batalha por Varsóvia

DAVIES, Norman. O levante de 44: a batalha por Varsóvia. Rio de Janeiro: Record, 2006.

Em janeiro desse ano, parte da mídia mundial voltou seus olhos para o campo de Auschwitz, localizado na Polônia, observando atentamente as tensões políticas que marcam o aniversário de libertação do campo em questão. No olho do furacão, rusgas diplomáticas entre poloneses, alemães, ucranianos, lituanos e russos especialmente, lutando pelas memórias da Segunda Guerra Mundial. Seus protagonismos, suas falhas, suas violações e seus martírios. Um dos casos emblemáticos foi a fala do primeiro-ministro ucraniano Arseniy Yatsenyuk em entrevista à TV alemã, dissertando sobre como a União Soviética teria invadido a Polônia e a Alemanha, uma afirmação descontextualizada e historicamente imprecisa quando falada de forma tão rasa, obviamente atendendo à objetivos políticos do presente.*

Para a compreensão do complexo panorama político do leste europeu, há uma série de obras disponíveis. E o livro de Norman Davies aqui resenhado tem lugar de destaque nesta bibliografia.

Durante as décadas que marcaram a permanência da Polônia como zona de influência soviética, o Levante de Varsóvia, como evento histórico, foi tratado como uma grande irresponsabilidade do Exército da Pátria, ou Armiya Krayova, isso quando era possível citá-lo diante da censura do regime fantoche de Moscou. Contudo, como memória de resistência, o levante de 44 permaneceu importante aos poloneses; o símbolo máximo da bravura polonesa e dos sacrifícios que, historicamente, seus vizinhos opressores os obrigaram a oferecer.

Norman Davies, conhecido historiador britânico-polonês respeitado por seus trabalhos sobre o leste europeu – especialmente sobre a Polônia –, dedicou uma extensa obra ao levante, revelando um extenso trabalho de levantamento de fontes e bibliografia que resultou em um trabalho muito completo sobre um evento que, ainda que tenha tido oficialmente apenas 63 dias, possui uma narrativa cuja memória se associa a décadas anteriores e, inevitavelmente, às décadas que a seguiriam.

A narrativa de Davies é dividida em três partes: uma dedicada a contextualizar historicamente o levante, analisando a coalizão aliada – fundamental para uma compreensão satisfatória dos desdobramentos do evento histórico em questão –, a invasão germânica e a relação da Polônia com a vizinha soviética. E já na primeira parte é perceptível na narrativa de Davies o ressentimento em relação ao descaso dos aliados ocidentais em relação à Polônia, mas principalmente a postura crítica – em nossa opinião, completamente justificável – no que concerne à atuação da União Soviética antes, durante e após o levante. Sua postura é agressivamente anticomunista e crítica à influência soviética no leste europeu; portanto, aos apologistas soviéticos, a obra de Davies é mais que provocativa. É antagônica.

A segunda parte do livro é aquela que mais interessa aos historiadores e entusiastas voltados às minúcias do ponto de vista militar. Davies acompanha as diversas nuances do levante quase que diariamente, fazendo uma transição entre aspectos micro do levante (relatos pessoais abundantes de diversos envolvidos, militares e civis) e os jogos políticos e diplomáticos que direcionaram o desenrolar dos eventos de acordo com seus resultados.

Os acima citados relatos pessoais enriquecem a obra de Davies. Dão uma dimensão das privações e da violência que marcaram o conflito. Operações de comunicação através dos esgotos de Varsóvia, crianças uniformizadas empunhando armas e enfrentado soltados treinados da Wehrmacht, as batalhas brutais que pouco avanço davam a qualquer um dos lados, os impasses durante a guerrilha urbana, a pouca ajuda aérea recebida por partes dos aliados, a atitude das tropas de Rokossovsky ao cessarem sua marcha na outra margem do Rio Vistula, deixando os soldados do Exército da Pátria a sua própria sorte, pouco escapa ao olhar atento de Davies. Se podemos tecer uma crítica à sua narrativa, essa reside no fato de que a forma como o autor a desenvolve ignora em diversos momentos a linearidade cronológica. Por si só isto não seria um problema, mas as idas e vindas de Davies nos dias do conflito em certos momentos tornam a leitura um tanto confusa, até mesmo enfadonha, requerendo atenção redobrada.

A terceira parte deixa transparecer a relação afetiva do autor com o levante. Fazendo uma profunda análise de como as narrativas e memórias sobre o Levante de 44 se transmutaram com o passar dos anos, acompanhando a rigidez ou a flexibilização do regime comunista na Polônia, mas dando também espaço para as visões sobre o evento no exterior, apresentando os conflitos entre as duas principais visões do evento: um levante heroico e necessário que demonstrou a fora dos poloneses uma vez mais diante de inimigos superiores ou mais uma tragédia causada pelo eterno romantismo nacionalista sacrificial dos poloneses, responsável por milhares de vidas perdidas em vão, já que o recuo alemão supostamente dava mostras de ser iminente.

Davies faz questão de alçar o Levante ao hall dos eventos mais importantes da Segunda Guerra Mundial, defendendo seu ponto de vista por conta da influência que o evento teve na configuração geopolítica do leste europeu e pela influência da Polônia na resistência anticomunista na região durante a Guerra Fria, tendo até mesmo sido decisiva na escolha de João Paulo II como papa. Além disso, Davies compara suas baixas às  de outros eventos de destaque, como o Dia D para dar maior peso aos seus argumentos de valorização do evento.

O autor afirma também que o descaso das potências ocidentais em relação ao levante era tamanho que, durante muitos anos e mesmo depois do fim da Guerra Fria, os ocidentais permaneciam confundindo o Levante de 44 com o Levante do Gueto de Varsóvia de 1943, e que o resultado disso era a desinformação e uma memória distorcida sobre as vítimas do segundo levante, apagando o esforço do Exército da Pátria em detrimento do sofrimento dos judeus do gueto um ano antes.

Davies termina a obra colocando a responsabilidade do desastre resultante do levante na conta não apenas do Exército da Pátria, mas também na de seus aliados. Sempre dispostos a ajudar no que concerne às suas retóricas, mas praticamente ausentes na prática, deixaram a Polônia à mercê dos nazistas. Já o lado soviético contemplou Varsóvia com traição, diante de promessas vazias de ajuda convertidas em inanição militar, desmoralização política e futura dominação.

Além de uma ótima narrativa, Davies apresenta uma infinidade de anexos diversos. Documentos, charges, mapas, canções, entre outros. Os anexos podem soar irrelevantes para meros entusiastas, mas são de grande valia para os pesquisadores sobre o tema.

Para alguns, a narrativa apaixonada de Davies pode ser incômoda, minando uma suposta imparcialidade que os trabalhos históricos, de fato, não advogam ter, já que a historiografia há décadas admite que as subjetividades dos autores levam seus trabalhos para determinados direcionamentos. Ainda assim, O levante de 44 é leitura obrigatória não apenas a todos os interessados no Levante de Varsóvia, mas aos que pretendem compreender eventos fundamentais da história polonesa, constituidores de memórias e resistências.


Preço médio: R$ 80,00




* Obs: sabemos que a URSS invadiu a Polônia logo após a Alemanha em setembro de 1939, por conta dos acordos do Pacto Molotov-Ribbentrop. O que ocorre é que a fala do primeiro-ministro descontextualiza os eventos e faz parecer que a Alemanha e a Polônia foram vítimas equânimes de uma invasão soviética deliberada, quando apenas a Polônia foi efetivamente agredida sem provocação pelas duas potências. A "invasão da Alemanha" por parte da URSS foi o contra-ataque totalmente compreensível dentro do contexto dos anos de mortes, sofrimento e privação pelo qual o povo soviético teve que passar, tanto pelas atitudes dos alemães quanto pelo pouco apreço à vida do Exército Vermelho por parte do seu alto comando. Não poderia sequer ser considerado uma invasão deliberada e descabida, haja vista que a derrota total do regime nazista era fundamental para assegurar a derrota do inimigo invasor, quando olhamos a situação a partir do ponto de vista dos soviéticos.