26 de julho de 2016

Extremismos, terrorismo e um problema para os historiadores

O presente texto foi escrito no calor da hora, diante das duas notícias citadas nos dois primeiros parágrafos deste. Talvez, pensando mais friamente sobre os pontos que levante, mude de ideia com o tempo. 

Por Icles Rodrigues

Postamos recentemente na página do Facebook do Leitura ObrigaHISTÓRIA um link de um evento terrível ocorrido em uma igreja francesa, onde um padre foi assassinado por dois terroristas que invadiram sua missa, atentado esse que foi assumido pelo Estado Islâmico. A comoção é justíssima, e a indignação das pessoas faz todo sentido. É curioso, inclusive, que a mesma imprensa que corriqueiramente é acusada de manipulação ideológica anti-islâmica é também acusada, em um momento como este, de ser relativista, "esquerdista", pró-muçulmana, entre outros adjetivos. 

No mesmo dia em que postamos esta notícia, publicamos outra mostrando a morte de mais de uma centena de civis na Síria, fruto de um bombardeio francês mal calculado. Se por um lado o Estado Islâmico é um problema sério tanto para os habitantes dos locais dominados por eles quanto para o resto do mundo, não vamos nos esquecer que o Estado Islâmico foi fruto das consequências da Guerra no Iraque. Análises que afirmam ser esse grupo terrorista meramente um fruto de uma suposta perversão inata do Islamismo não somente ignoram que diversas religiões na história cometeram (e cometem) atos de violência, uns maiores, outros menores (até grupos de budistas violentos você encontra), mas também que eventos de tamanha complexidade não se explicam de forma tão rasa. Tampouco ignoram que há uma grande massa de jovens não-imigrantes  que são seduzidos constantemente por retóricas extremistas de resolução dos problemas do mundo, e há um histórico de outros tipos de extremismos políticos, ideológicos e culturais que, durante décadas, seduziram outros jovens com outros backgrounds. O terrorismo de matriz religiosa islâmica é só mais um, ainda que choque em especial por sua brutalidade e suas consequências.

Há diversas escalas de extremismo, desde bullying virtual a quem reclama daquele seu político favorito à morte de pessoas em ataques violentos. Equiparar todas seria ridículo, mas todas têm uma matriz de ação lógica semelhante: calar, desmoralizar, destruir, obliterar o outro. Terrorismo e guerrilha já foram muitas vezes utilizados na história como arma dos mais fracos contra poderes superiores estabelecidos, desde católicos republicanos do Exército Republicano Irlandês a comunistas latino-americanos contra as ditaduras do Conesul ou de governos abjetos na América Central. Mas há uma fronteira moral que separa os ataques à autoridades, construções e símbolos de poder das mortes de civis, incluindo aí o assassinato randômico de um padre em sua própria celebração de missa. Isso extrapola qualquer conceito de "luta justa" com os quais eu, como indivíduo, consigo reconhecer.

Não defendo, nem nunca defendi relativismos morais. Ao contrário de alguns colegas, cuja lógica argumentativa eu compreendo, discordo de que toda prática cultural deve ser respeitada em suas particularidades. Não vou me abster de classificar como barbarismo a mutilação genital de meninas, ou mortes rituais em sacrifícios de quaisquer tipos, como o enterro de crianças vivas. Tampouco acho que o fanatismo de alguns líderes políticos e religiosos será vencido por retóricas de paz e tolerância. No entanto, resoluções pacifistas para este tipo de conflito precisam estar no horizonte. Defendo ferrenhamente que Sun Tzu não estava errado quando, há milhares de anos atrás, afirmou que o objetivo da guerra era a paz. Tampouco Carl von Clausewitz discordaria disso. Mas ou a paz se assenta em ambos os lados, ou não haverá paz, pois o ressentimento da derrota, da humilhação e da instabilidade podem gerar novos monstros.

E aí entramos em uma situação muito complicada: não é possível destruir uma ameaça como o autointitulado Estado Islâmico com retórica de paz e compreensão do contexto, mas tampouco é possível conter os efeitos colaterais de um ataque massivo ao grupo apenas através do combate armado. Se você adota apenas a primeira postura, corre o risco de manter o problema como está e alimentar as retóricas extremistas internas. Se adota apenas a segunda, corre o risco de trocar seis por meia dúzia, aniquilando uma ameaça e gerando outras de proporções não calculáveis, pois não é possível mensurar as consequências futuras, apenas compreender que elas são muitas vezes inevitáveis.

Falamos em diálogo, mas como esse diálogo pode ser feito? E com quem? Mesmo que, grosseiramente, separássemos o mundo contemporâneo em "civilizações" no escopo do que Samuel Huntington fez na década de 1990, ou se escolhêssemos, por motivos estritamente pragmáticos, separar os lados conflitantes nesta década a partir de outros parâmetros que não os de Huntington, ainda estaríamos com o problema de que não há centralidade nos lados dessa contenda. Para cada lado que você identificar haverão várias, talvez dezenas ou centenas de subdivisões, algumas das quais se excluem mutuamente.

Outros falam em exterminar o inimigo. E como se faz isso? O que define o inimigo? Além de todas as questões de caráter conceitual que não podem ficar de fora do debate público (ainda que muitas vezes fiquem, dependendo de quem fala), há o fato indiscutível que tentativas anteriores de obliteração de inimigos fora de contextos de guerra entre nações tendem a plantar sementes de revanches futuras, como já citado aqui.

Quem sou eu pra ditar a fórmula mágica de resolução dos problemas envolvendo o ISIS e os atos terroristas ao redor do mundo (que, lembrem-se, acontecem aos montes em outros lugares que não a Europa)? No entanto, se eu não tenho uma solução pronta, eu pelo menos posso apontar os erros e as distorções de algumas retóricas presentes em nosso contexto "ocidental".

Como ser humano, me embrulha o estômago o que certos grupos fazem, e meu ímpeto revanchista entra em ebulição quando leio sobre atentados terroristas ou bombardeios de civis na Síria e outros países. Mas meu lado historiador me diz que, se eu deixar o revanchismo guiar minhas análises da sociedade ao meu redor, meu eu-futuro olhará para meu eu de hoje e dirá, envergonhado "você falou bobagem".

E isso está atrelado a uma enorme dificuldade que nós, historiadores, temos de nos posicionar a respeito de eventos imediatos. Talvez não sejamos suficientemente treinados para tal, mas quem o é diante das instabilidades desta década? De qualquer modo, penso que há um grande problema para nossa área de atuação: ou estamos treinados para compreender os eventos contextual, sincrônica e diacronicamente, mas mal treinados para o presente, ou estamos fechados em nossos casulos das microespecializações, limitados demais para discutir com eficiência os problemas de nosso presente. Diante das consequências do terrorismo no século XXI, quando estamos despreparados para analisá-las, acabamos nos agarrando a um "senso comum invertido". Como lidar com os problemas do mundo quando você mergulha em um espiral de especialização, tornando-se um grande entendedor daquele objeto ou recorte geográfico-temporal específico, mas sem entender muita coisa de todo o resto que o cerca?

Estudos específicos não são fechados em si mesmos. Mesmo os estudos mais microscópios levantam perguntas e conclusões que podem ser aplicadas a contextos muito maiores. No entanto, isso não muda o fato de que nós, historiadores, sofremos para reagir adequadamente às contingências do presente. Podemos até entender o ontem que explica o hoje, mas se não conseguimos conjecturar e propor o amanhã, a sensação de vazio torna-se inevitável.

Estamos em um momento histórico em que os meios de comunicação permitem uma pluralidade de vozes muito diversa, ainda que seja um fato ainda não alterado historicamente que nem todas elas têm o mesmo alcance e ressonância. E é justamente nesse contexto que aqueles mais preparados para responder às necessidades sociais do presente precisam se manifestar. Falta-nos paciência, por vezes falta-nos traquejo, mas pior que isso é a falta de iniciativa. Não me parece plausível afirmar que outros colegas de áreas vizinhas, como as Ciências Sociais, por exemplo, estejam no mesmo grau de imobilidade no qual nós por vezes nos vemos engessados.

Talvez esse próprio texto fale, fale e não diga nada, como tantas outras vozes por aí. Talvez ele seja acusado de "isentão", termo usado pejorativamente para criticar quem tenta ponderar mais e se polarizar menos. Sinceramente, pouco me importa. O que me importa é que eu temo pelo futuro, e acho que todos nós, da área da História, deveríamos nos preocupar com ele não apenas como expectativa, mas como algo ainda mutável.