24 de junho de 2016

Consequências imediatas do "Brexit" e o nacionalismo


Por Icles Rodrigues

O texto de hoje no blog não pretende ser extenso ou revelador. Escrito no calor da hora por um simples historiador ainda assimilando as informações que recebe, não trará grandes contribuições ao que já se discute mundo afora. No entanto, creio que os leitores do Leitura ObrigaHISTÓRIA gostariam de ler algumas palavras a respeito do referendo que decidiu pela saída do Reino Unido da União Europeia iniciado em 23 de junho de 2016.

O resultado do referendo, se tomarmos a votação em todo o Reino Unido, foi apertado: 51.9% dos eleitores (mais precisamente 17.410.742 votos) votaram a favor da saída, enquanto 48,1% dos eleitores (mais precisamente 16.141.241 votos) votaram a favor da permanência.  O gráfico a seguir mostra as porcentagens por região.


Fonte: BBC News



É possível observar que todas as regiões da Inglaterra (além do País de Gales) votou a favor do rompimento com a União Europeia, excetuando Londres. Esta exceção, no entanto, não impressiona, haja vista o fato de a capital britânica ter um elevado número de imigrantes residentes. Não podemos aqui ignorar o componente nacionalista, mas reduzir os votos separatistas a uma simples resposta nacionalista e xenofóbica seria imprudente. Diante da atual crise econômica mundial, aumento da desigualdade social e do desemprego, poder aquisitivo minguando e incertezas quanto ao futuro, as preocupações da população aumentam. Os sintomas desta crise são inegáveis, independente de posicionamentos políticos e ideológicos; a grande questão é que, na hora de se buscar a causa do problema e, consequentemente, sua solução, os diagnósticos são bastante diferentes.

A postura anti-União Europeia se ancora, entre outras coisas, na suposta perda de autonomia política e econômica que advém da integração, haja vista que a União Europeia além de ter sua própria moeda, adotada por 19 países entre os membros, tem seu próprio parlamento e atualmente dita as regras em uma escala mais ampla de áreas, como meio ambiente, transporte, direitos do consumidor, etc. Aliada a estes fatores está a retórica nacionalista conservadora, que enxerga como uma das causas das instabilidades políticas atuais o fluxo cada vez maior de imigrantes, especialmente de origem muçulmana. Há, inegavelmente, uma série de eventos problemáticos não apenas na Inglaterra, mas em outros países europeus, oriundos dos choques entre culturas e religiões que não podem simplesmente ser ignoradas, devendo estar sempre no foco de um debate responsável. 

Contudo, o nacionalismo exacerbado anti-imigratório - há quem, no Reino Unido, se refira à Europa por "Califado do Eurostão" - traz a tona muita apreensão em setores que temem a escalada do nacionalismo. Citamos abaixo um trecho do livro O mito das nações, de Patrick J. Geary, onde este fala a respeito do nacionalismo de caráter étnico. É um texto longo, mas creio que vale a pena compartilhá-lo integralmente.

A história do surgimento do nacionalismo no século XVIII e início do século XIX já foi contada diversas vezes. Os Estados-nações de base étnica dos dias de hoje foram descritos como “comunidades imaginadas, geradas pelos esforços criativos dos intelectuais e políticos do século XIX, que transformaram antigas tradições românticas e nacionalistas em programas políticos. De fato, uma grande quantidade de livros e artigos – alguns acadêmicos, outros direcionados para o público comum – defendem a ideia de que muitas “tradições antiquíssimas”, das identidades nacionais às plaids escocesas, não passam de uma invenção cínica e recente de políticos e empresários. Há muito de verdade nessa afirmação, especialmente se levarmos em conta que ela enfatiza o papel formador, em um passado recente, de indivíduos e grupos na elaboração de ideologias supostamente antigas. Entretanto, seria absurdo sugerir que, pelo fato de essas comunidades serem em certo sentido “imaginadas”, elas devam ser descartadas ou trivializadas, ou deduzir que “de certa forma imaginadas” seja sinônimo de “imaginárias” ou “insignificantes”. Mesmo que as formas específicas de Estados-nações de base étnica dos dias de hoje tenham de fato sido geradas pela imaginação de românticos e nacionalistas do século XIX, isso não significa que outras formas de nações imaginadas não tenham existido no passado – formas tão poderosas como as do mundo moderno, mesmo que muito diferentes. Acadêmicos, políticos e poetas do século XIX não inventaram o passado do nada. Eles se basearam em tradições, fontes escritas, lendas e crenças preexistentes, mesmo que as tenham usado de novas maneiras para forjar unidade ou autonomia política. Além disso, mesmo que essas comunidades sejam em certo sentido imaginadas, elas são bem reais e muito poderosas: todos os fenômenos históricos importantes são de certa forma psicológicos, e os fenômenos mentais – do extremismo religioso à ideologia política – provavelmente mataram mais gente do que qualquer outra coisa, com exceção da peste negra.

Os efeitos da ascensão da retórica nacionalista, no entanto, deverão ser analisados com frieza nos meses e anos que virão. Mais imediatas são outras consequências o rompimento, que menos de 24 horas após seu resultado, já aparecem.

Reações internacionais

Em primeiro lugar, as possibilidades de separatismo no próprio Reino Unido. A Irlanda do Norte e a Escócia votaram majoritariamente pela permanência na União Europeia: em ambos os países já abundam as conversas as respeitos das consequências do resultado do referendo, haja vista que em setembro de 2014 a Escócia realizou sua própria consulta pública para saber se os escoceses gostariam de permanecer parte do Reino Unido ou não. O voto pela permanência venceu (55% dos votos), mas o resultado do referendo do dia 23 coloca a consulta anterior em xeque. A primeira-ministra da Escócia, Nicola Sturgeon, afirmou nesta sexta-feira (24/06) que um segundo referendo pela independência da Escócia está "em cima da mesa" como consequência direta do resultado do referendo britânico.

Na Irlanda do Norte, o resultado também resultou em movimentações políticas a favor da separação do Reino Unido. O partido republicano Sinn Féin, historicamente favorável à reunificação das duas Irlandas, anunciou também nesta sexta-feira que apoiará uma consulta na Irlanda do Norte sobre a unificação do país com a República da Irlanda, esta última membro da União Europeia.

Declan Kearney, presidente do partido, afirmou: "Temos uma situação em que o Norte será arrastado para fora da União Europeia por causa de uma votação na Inglaterra. O Sinn Féin vai fortalecer o seu pedido, sua exigência de longa data, para uma votação sobre a unificação". Aparentemente o vice-primeiro-ministro da Irlanda do norte, Martin McGuinness, também apoia a consulta.

David Cameron, primeiro-ministro britânico, propôs a realização do referendo para cumprir sua promessa de campanha – ele havia prometido convocar a consulta popular se vencesse com maioria as eleições gerais de 2015. No entanto, o primeiro-ministro era favorável à permanência no bloco. Diante do resultado do dia 23, Cameron renunciou ao cargo, sabendo que seria pressionado para levar o resultado do referendo adiante contra sua vontade. "Agora que a decisão foi tomada, precisamos encontrar o melhor caminho. Farei o que for preciso para ajudar", afirmou Cameron. "Eu amo esse país e me sinto honrado de ter servido a ele." O premiê foi ao Palácio de Buckingham para comunicar pessoalmente à rainha Elizabeth II sua intenção de renunciar em outubro.

Não encontrei os créditos originais, mas a tirinha pode ter sido feita pela página Plandball ou página semelhante.

Nos Países Baixos, o político de direita Geert Wilders, fundador do Partido pela Liberdade e político abertamente crítico aos muçulmanos, imediatamente se posicionou favorável a um referendo para retirar o país da União Europeia. A líder do partido Frente Nacional na França, Marine LePen, revelou sua intenção de fazer o mesmo em seu país. "Como peço há anos, acrescentou, agora é necessário o mesmo referendo na França e nos países da União Europeia", afirmou pelo Twitter. O ministro francês das Relações Exteriores, Jean-Marc Ayrault, afirmou: "A Europa segue, mas deve reagir e recuperar a confiança da população. É urgente".

Na Alemanha, Sigmar Gabriel - vice-chanceler e ministro da Economia - afirmou: “Droga! Um mau dia para a Europa”. O Ministro das Relações Exteriores, Frank-Walter Steinmeier, disse que o voto pela saída do Reino Unido da União Europeia marca um “dia triste” para a Europa. “Parece que é um dia triste para a Europa e a Grã-Bretanha”, afirmou pelo Twitter. A chanceler Angela Merkel afirmou, sobre o Brexit: "O dia de hoje é uma cesura para a Europa. É uma cesura para o processo europeu de união". Ela lembrou que o objetivo da criação do bloco era promover a paz, e esse ideal permanecerá no futuro. "Não devemos esquecer nunca que a ideia de uma União Europeia foi uma ideia de paz.". Ela atribui à Alemanha uma responsabilidade especial para o êxito da UE. "Somente juntos poderemos continuar sustentando nossos valores de liberdade e de Estado de direito no mundo." Vale citar que Angela Merkel e seu partido são fortemente criticados diante de sua postura mais aberta com relação à entrada de refugiados no país. 

Na Austrália, o premiê Malcolm Turnbull disse que espera um período de incerteza e de alguma instabilidade nos mercados globais. “O impacto na Austrália imediatamente, diretamente, de um ponto de vista legal, será limitado, porque deve levar alguns anos para o Reino Unido sair da União Europeia, para negociar uma saída. [...] No entanto, já vimos grandes quedas nos mercados de ações e haverá um grau de incerteza por algum tempo”.

O presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, que havia alertado para a "destruição da União Europeia e da civilização política ocidental” no caso de o “sair” vencer, fez um breve pronunciamento em que disse que está preparado para o cenário negativo e que não haverá um vácuo legal entre o Reino Unido e o bloco até que a região formalize sua saída. “Hoje posso dizer que estamos determinados a defender nossa unidade como 27. É um momento histórico, mas com certeza não é um momento para reações histéricas".

A resposta do mercado financeiro foi bastante desfavorável.  Na Europa, Londres operava em queda de 8%, a maior em 30 anos, segundo a "CNN". Madrid, na Espanha, abriu o dia com prejuízos de 15,90 %, quase o mesmo índice na Grécia. Frankfurt, na Alemanha, caía 10 %. Paris, na França, iniciou a sessão em baixa de 7,7%. Já na Ásia, a Bolsa de Tóquio despencou 7,92%. O resultado no Reino Unido foi um choque para o mercado japonês, comparável à quebra do Lehman Brothers, em 2008. O índice Nikkei 225 perdeu 1.286,33 pontos, para terminar em 14.952,02. Bolsas de Hong Kong e Sydney perdiam em torno de 3% no final da manhã e a de Xangai, 1,19%. A libra esterlina, moeda do Reino Unido, despencou e atingiu o menor valor frente ao dólar em 31 anos, chegando a US$ 1,32.

Para deixar a União Europeia, o Reino Unido deverá invocar o Artigo 50 do Tratado de Lisboa, que lhe dará dois anos para negociar o rompimento. O artigo está em vigor desde 2009 e nunca foi testado, o que torna o processo de ruptura ainda um tanto quanto nebuloso. Nesse processo, o Reino Unido se compromete a respeitar as leis e tratados da UE, mas não pode tomar parte de quaisquer decisões do bloco composto pelos demais membros.

O blefe de James Cameron, que procurava maiores privilégios para o Reino Unidos em relação ao bloco, falhou diante de uma oportunidade que os setores conservadores não deixaram escapar pelos dedos. Se a médio ou longo prazo esta ruptura será ou não benéfica ao país, teremos que observar para saber. O que podemos afirmar, no entanto, é que este precedente deve servir de lição para uma comunidade que, cada vez mais, entrega-se a projetos neoliberais e empreendimento de medidas de austeridade, que acirram ainda mais os ímpetos das populações em seguir o exemplo britânico.

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A EUROPA ALEMÃ, DE ULRICH BECK
NAÇÕES E NACIONALISMOS, PARTE 1