O texto abaixo foi escrito pelo colaborador Rodrigo Prates de Andrade, historiador e atualmente mestrando em História pela Universidade Federal de Santa Catarina, exclusivamente para o blog Leitura ObrigaHISTÓRIA
“Negros escravizaram portugueses por mais de 741 anos”.
Esta afirmação constituíra o título e o cerne de um texto elaborado no ano de
2015 pelo blog “Renato Furtado – contra a idolatria estatal” e que nos
últimos dias voltara a circular pelas redes sociais. A oração compusera um
quadro mental que antagonizara “negros” e “portugueses”, isto é, a escravidão
na Península Ibérica medieval se definira através de um antagonismo entre um
Império Mouro e Portugal. De acordo com o autor, “mouro vem do latim Maures que
significa Negro, devido a cor da pele deles dos integrantes do Império Mouro”.
Quadro que nos remetera a outro, este composto pelas mãos brilhantes do pintor
Albrecht Altdorfer (1480-1538) em 1529: a Batalha de Isso. Na obra de Altdorfer
as tropas de Alexandre e Dário foram representadas sob as vestimentas do século
XVI e.c. – os macedônicos eram os alemães e os persas eram os turcos. Uma
batalha do século IV a.e.c renascera no pincel de um artista seiscentista.
Figura 1: A Batalha de Isso - Albrecht |
Altdorfer
cometera o pecado máximos dos historiadores, o anacronismo, ao imputar nas
sociedades grega e persa a sua própria realidade. Podemos dizer que o objeto
deste ensaio compartilhara com estes ideais: mesmo que distante a escravidão
dos “portugueses” empreendida pelos “negros” se aproximava do século XXI tanto
para negar aquilo que o autor definira enquanto uma “mentira”[1]
como também empática frente a uma nova “escravidão estatal”[2].
Porém no fim, este incorrera em determinados anacronismos que moldaram a bel
prazer sua história.
O primeiro deles fora a delimitação
de um Império Mouro, pois, mesmo que possamos encontrar estes termos em obras
cristãs principalmente no reino de Castela e posteriormente em Portugal, ele
mesmo não fora um consenso em sua época. No Livro dos Feitos, narrativa
autobiográfica de Jaime I de Aragão (1208-1276), as populações muçulmanas
ibéricas eram chamadas de “sarracenas”. Por outro lado, no período
expansionista dos primeiros califados, este “império” - termo exógeno ao tempo
e espaço aqui analisados – autodenominava-se como Dar al-islam, o mundo
muçulmano (EL FASI; HRBEK, 2010). Sob um princípio identificador religioso, o Dar
al- islam abarcara populações árabes, persas, sírias, berberes, dentre
outras.
Mas e a “invasão da Península Ibérica”? Importa destacar que discordamos diametralmente do termo invasão da Península Ibérica pois este concebe que as populações que ali viveram detinham uma espécie de propriedade atemporal e eterna da península. Seguindo este raciocínio visigodos e romanos também tomaram aquelas terras, ou seja, invasor que toma de invasor recebe cem anos de perdão! Assim na conquista da Península Ibérica as tropas muçulmanas foram majoritariamente formadas por berberes oriundos do Norte da África (RUCQUOI, 1995) o que não significara assumir que estes eram “negros”. De acordo com Richard Fletcher, o termo “mouros” fora utilizado tanto para descendentes de berberes e árabes na península e posteriormente estendido ao norte da África – vide a região da Mauritânia – bem como para cristãos ibéricos que se converteram ao islamismo (FLETCHER, 2006).
Em “Negros escravizaram portugueses por mais de 741 anos”
o autor afirmara que:
Na época os
portugueses não eram chamados de portugueses, porém muitos portugueses são
descendentes dos mesmos incluído eu mesmo que na época o sobrenome dos meus
antepassados era Hurtado, sendo alterado posteriormente para Furtado de
Mendonça, culminando em apenas Furtado. Não deixem manipuladores ideológicos
enganarem vocês por questão de nomenclatura, os nomes podem mudar, mas isso não
altera a descendência. […] Quando eu falo “Negros” é porque assim eram chamados
mesmo os que tinham a pela não tão escuras, os descendentes deles recebem
bolsas e cotas no Brasil, então eles podem ser considerados negros pelo padrão
atual brasileiro também.
O autor se definira enquanto
descendente de uma identidade branca e cristã frente a uma alteridade negra e
muçulmana – “portugueses” eram o nós e “negros” eram o eles.
Fator interessante quando encontramos referências a casamentos entre cristãos e
muçulmanos na Península Ibérica (RUCQUOI, 1995). Talvez o eles também
seja o nós. E fica ainda mais interessante quando analisamos as indicações
de um de seus leitores: “onde colocou portugueses, coloque brancos, pois também
outros povos ibéricos foram escravizados, entre eles portugueses, galegos,
castelhanos, andaluzes, catalães, bascos, andorranos, etc.”.
Pressupor uma distinção étnica entre brancos e negros não faz sentido quando nos referimos a Península Ibérica medieval. Por exemplo, a concepção do Dar al-islam entrevia a necessidade de um mundo não-muçulmano o Dar al-harb – que no futuro deveria se tornar muçulmano – mas também uma categoria intermediária que permitira as relações entre muçulmanos e não-muçulmanos o Dar al-sulh. E mais, o reconhecimento dos dhimmis, cristãos e judeus que viviam dentro do mundo muçulmano sob um imposto específico (RUCQUOI, 1995). Assim, os muçulmanos mantiveram escravos, mas também uma vasta população livre cristã chamada de moçárabes.
Resolvido o falso problema de “negros” e “portugueses” partamos aos “741 anos”. Para formular este número o autor parte de uma cronologia que inicia em 711 com a chegada das tropas berberes e árabes e termina em 1452. Mas o que acontecera em 1452? Muitas coisas é claro, mas a provável data ao qual o autor de “Negros escravizaram portugueses por mais de 741 anos” se refere é na verdade o ano de 1492, quando os Reis Católicos conquistaram o reino de Granada. Seguindo esta nova cronologia chegaríamos a 781 anos, dado que como veremos é errôneo tanto acerca da escravidão quanto da presença muçulmana na península.
Quando berberes e árabes iniciaram o processo de conquista da península, muitos duques visigodos se converteram ao islamismo a fim de manter seu status quo. De maneira similar muitos bispos cristãos também não ofereceram resistência aos recém-chegados e mantiveram a antiga autoridade em suas dioceses (RUCQUOI, 1995). Por outro lado, com a consolidação da política expansionista dos reinos ibérico-cristãos no decorrer dos séculos XI e XIII, estes também fizeram muçulmanos escravos. E pouco a pouco os reinos muçulmanos foram resumidos a um único reino, Granada, que em 1264 se tornara vassalo do reino de Castela (RUCQUOI, 1995). Deste modo, os “741 anos” ou mesmo os 781, tornam-se inverossímeis quando contrapostos a realidade ibérica.
No Livros dos Feitos vemos sobre as conquistas frente aos muçulmanos o seguinte: “fizemos cativos os sarracenos da ilha que estavam rebelados na montanha, para que fizessem a nossa vontade, e os demos àqueles que os desejavam, para povoarem a terra na condição de cativos” (JAIME I DE ARAGÃO, 2010). Se muçulmanos escravizaram cristãos, cristãos também escravizaram muçulmanos, o que não significara qualquer revanchismo. A escravidão fora uma instituição principalmente vinculada a guerra que mesmo antes e depois do Império Romano se mantivera em boa parte do Mediterrâneo, no entanto, sem ocupar um lugar central naquelas sociedades. Estes ocuparam uma presença ínfima frente aos servos e camponeses no decorrer da Idade Média (PERNOUD, 2005). E entre a população livre, para Brian Cátlos, os mudéjares – muçulmanos que viviam sob o domínio cristão – integraram-se aos territórios aragoneses e catalães por meio de suas atividades produtivas e comerciais. Proprietários ou arrendatários do rei estas populações muçulmanas sob o domínio cristão possuíram direitos semelhantes aos de seus vizinhos de outras religiões (CÁTLOS, 2010).
Figura
2: Cristão e muçulmano selando
um pacto - Cantigas de Santa Maria de
Afonso X de Castela
|
No
intuito de superar uma síndrome da Batalha de Isso, não podemos então falar que
os negros escravizaram os portugueses por 741 anos por uma série de fatores: 1)
não é possível estabelecer uma antagonização entre brancos e negros nestes
séculos; 2) Se nem todos se tornaram escravos em 711 – na verdade um número
pequeno – este número decresceu de modo exorbitante até 1264, caracterizando
números que não podem ser levados a sério; 3) Porque simplesmente a maior parte
da população não era escrava.
No decorrer deste texto não falamos
sobre a escravidão moderna ou sobre a dívida história tendo em consideração a
vasta produção sobre o tema na língua portuguesa bem como o fato de não sermos
especialistas na área. Contudo, vale lembrar que a escravidão praticada por
cristãos e muçulmanos se distingue totalmente daquela do período moderno tendo
em vista a caracterização cada vez mais racial no século XIX, mas
principalmente a diferença colossal dos números e da centralidade do escravo na
economia e produção.
De acordo com Marcelo Rede, o que
sociologicamente caracterizaria um escravo, sem é claro constituir um modelo
atemporal foram as relações de trabalho:
o escravo
seria, então, aquele tipo de trabalhador que, no interior do processo de produção,
não estaria apenas apartado do controle dos meios produtivos (característica
que compartilha com outros tipos de trabalhadores, inclusive o assalariado),
mas também privado do controle de seu próprio esforço produtivo. Vale dizer, é
marcado pela ausência de soberania quanto à sua inserção no processo que
garante a subsistência material, quanto à sua posição produtiva elementar
(REDE, 1998).
REFERÊNCIAS
E FONTES
CARDOSO,
Ciro Flamarion; REDE, Marcelo; ARAÚJO, Sônia Rebel. Escravidão antiga e moderna.
Tempo, 6, 1998, p. 9-17.
CÁTLOS,
Brian. Vencedores y vencidos: cristianos y musulmanes de Cataluña y
Aragón, 1050-1300. Valência: Universitat de València, 2010.
EL
FASI, Mohammed; HRBEK, Ivan. O advento do islã e a ascensão do império
muçulmano. In: História Geral da África: África do século VII ao XI. 3
v. UNESCO, 2010.
FLETCHER,
Richard. Moorish Spain. Califórnia: University of California Press,
2006.
JAIME
I DE ARAGÃO. Livro dos Feitos. Tradução de Luciano José Vianna e Ricardo
da Costa. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo
Lúlio” (Ramon Llull), 2010.
PERNOUD,
Régine. Idade Média – o que não nos ensinaram. Rio de Janeiro: Agir,
1994.
RUQCUOI,
Adeline. História Medieval da Península Ibérica. Lisboa: Estampa, 1995.