28 de março de 2016

O que aconteceu quando a Rússia baniu o álcool?


O texto abaixo é uma tradução livre de um artigo publicado no site Russia Beyond the Headlines, escrito por Mikhail Butov. Acesse o texto original clicando aqui

Em 31 de julho de 1914, um decreto do czar baniu a criação e a venda de álcool na Rússia. Originalmente, o banimento se deu devido à mobilização, já que a Rússia entrava na Primeira Guerra Mundial. No entanto, quase imediatamente ele foi estendido pela duração das hostilidades. Depois disso, o direito de banir o álcool foi entregue do governo central para as autoridades locais: as dumas municipais, comunidades rurais e concílios distritais. Então, algumas cidades e distritos permitiram a venda de vinho e cerveja, mas a vodka permaneceu banida em toda parte.

Os membros da Duma Federal entre o campesinato propuseram uma lei banindo o álcool “de circulação pela eternidade”. Sabiamente, a lei não passou, mas o banimento de álcool permaneceu de pé por muito tempo: os bolcheviques optaram por mantê-lo após a revolução de 1917, significando que a proibição na Rússia durou onze anos no total.


“O maior ato isolado de heroísmo nacional”

Estatisticamente, os russos não eram particularmente grandes bebedores: a nível de comparação, a França consumia cinco vezes mais álcool que a Rússia; a Itália, três vezes mais. No entanto, os russos bebiam majoritariamente vodka, e o faziam como uma vingança: não frequentemente, mas em quantidades chocantes.
 
Desenho de Natalya Mikhaylenko
Durante a Guerra Russo-Japonesa entre 1904 e 1905, a bebedeira generalizada entre os conscritos criou problemas durante a mobilização, e o número de soldados com desordens mentais causadas pelo álcool era considerável. À frente da nova guerra, o czar viajou por diversas províncias russas. “Com grande pesar, ele viu tristes imagens de enfermidade, pobreza familiar e negligência nos negócios, as consequências inevitáveis da vida que não seja de sobriedade”, escreveu o historiador Sergei Oldenburg na época.

No início de 1914, o czar mandou um edito para o Ministro das Finanças com a instrução de “melhorar o bem estar econômico da população, não importando as perdas financeiras”, já que a receita orçamentária deveria vir não da venda de algo que destrói “os poderes espirituais e econômicos” do povo, mas sim, de fontes sadias.

Foi um passo genuinamente radical, já que as finanças oriundas da venda de vodka eram responsáveis por um terço do orçamento nacional. Ainda assim, quando fez as contas do orçamento para 1915 e apesar do fato de a Rússia estar em guerra, a Duma Federal excluiu totalmente as finanças originarias da venda de vodka. O político britânico David Lloyd George descreveu esta atitude como “o maior ato isolado de heroísmo nacional”. A mera possibilidade de um ato como este atestaria o enorme potencial econômico que a Rússia tinha na época.

“Até os animais domésticos ficaram mais alegres”

Logo após a proibição estar em curso, pesquisas estatísticas foram conduzidas para estudar seus efeitos. Os resultados fascinantes foram publicados em trabalhos pelo psiquiatra Ivan Vvedensky, pelo proeminente físico Alexander Mendelson e outros. De acordo com eles, houve uma diminuição dramática do crime, hospitais psiquiátricos mal tinham pacientes restante e a vida nos vilarejos foi miraculosamente transformada. Campesinos não estavam apenas melhorando suas fazendas, comprando samovares e máquinas de costura, mas também depositando dinheiro poupado nos bancos.

Muitos dos que participaram das pesquisas afirmaram estar dispostos a pagar mais impostos, desde que a venda de álcool permanecesse banida. “Mesmo animais domésticos ficaram mais alegres”, um dos entrevistados respondeu. Alguns problemas inesperados surgiram: escolas de medicina reclamaram da falta de cadáveres para lições de anatomia. Costumavam haver muitos suicidas, cujos corpos acabavam em escolas de medicina. Contudo, o número de suicídios diminuiu assim que cessaram as bebedeiras.

Os autores destes estudos reconheceram que a proibição teve também alguns efeitos negativos. O principal deles foi o aumento na fabricação caseira de vodka nas vilas e no consumo de substitutos (álcool desnaturado, esmalte, verniz) em cidades – embora se acreditasse que apenas bêbados incorrigíveis beberiam bebidas improvisadas e esmalte para substituir a vodka. A falta de álcool criou alguns problemas na vida cotidiana também. Casamentos sem álcool ganharam alguma popularidade, levando em conta que as pessoas gostavam do fato de eles serem mais baratos. No entanto, um funeral russo sem vodka era inconcebível. Haviam também medos de que o tédio e a falta de vodka pudessem encaminhar as pessoas para a jogatina e a depravação. No entanto, contra o pano de fundo do aumento do bem estar e da prosperidade, estes efeitos negativos menores não tinham grandes consequências, de acordo com a conclusão dos autores.

Verniz, distúrbios e cocaína

Ainda assim, nem tudo eram flores. Apenas em agosto de 1914, cerca de 230 bares ao redor da Rússia foram esmagados por pessoas demandando vodka. Em alguns desses incidentes, a polícia precisou abrir fogo contra os manifestantes. O governador de Perm apelou para o czar permitir a venda de álcool por pelo menos duas horas por dia “de modo a evitar confrontos sangrentos”. A mobilização não foi tão sutil quanto esperado: conscritos invadiam depósitos de vinho em cidades, e tropas eram enviadas para dispersá-los, causando centenas de vítimas.

Durante a revolução, distúrbios por vinho eram ocorrências regulares. Os bolcheviques tiveram que jogar fora todos os vinhos da adega do Palácio de Inverno (com garrafas que valiam milhares de rublos) para impedir que fossem saqueados pelos soldados, que o beberiam descontroladamente. Levando em conta que as destilarias de vodka tiveram que fechar, aproximadamente 300.000 pessoas ficaram desempregadas e o Estado precisou lhes pagar uma compensação oriunda de seu orçamento.

Na verdade, o consumo de substitutos de vodka em cidades disparou, com a produção de esmaltes e verniz aumentando em dez vezes. Memórias individuais datando dos anos anteriores à revolução pintam um panorama não de sobriedade alegre, mas de bebedeira massiva nas vilas. A bebida era feita de quase tudo: serragem, rebarbas de madeira, beterraba e outros tipos de forragens. Álcool forte era vendido apenas em restaurantes caros, causando ainda mais descontentamento entre aqueles que não podiam pagar.

Além disso, a guerra e a proibição causaram um imenso aumento no vício em drogas, especialmente em São Petersburgo. Antes, a cocaína e a heroína eram vendidas em farmácias; contudo, mais ou menos na mesma época muitas substâncias foram classificadas como narcóticos perigosos e foram banidas. Porém, já em 1915, traficantes deram um jeito de estabelecer o fornecimento de ópio da Grécia e da Pérsia, enquanto a cocaína era trazida da Europa. Foi a cocaína que se tornou inseparável da imagem não apenas da juventude decadente de São Petersburgo, mas também do comissariado bolchevique e seus casacos de couro.

Continuidade

As autoridades soviéticas aboliram a proibição em 1925, já que precisavam de dinheiro para modernizar a economia do país. De acordo com relatos contemporâneos, quando as destilarias voltaram a operar, as pessoas choravam de alegria nas ruas, abraçando e beijando umas às outras. De acordo com outros relatos, contudo, houve quem chorasse não de alegria, mas por medo e desespero.

Muitas das características e a retórica daquele tempo ostentam uma impressionante semelhança com a retórica da campanha anti-álcool lançada por Mikhail Gorbachev nos anos 1980. Registros de casamentos sem álcool com longas passagens falando sobre o quão bons eles foram podem ser encontrados, praticamente sem alterações, nas páginas de jornais de 1914 e de 1986. A principal similaridade, contudo, é que em ambos os casos, o lançamento de campanhas anti-álcool acabaram com uma mudança de regime no país.