Quando a história dos povos ditos “pré-colombianos” não é totalmente ignorada por escolas ou até mesmo o ensino superior, geralmente ela é permeada de pontos pacíficos. Trabalha-se, por exemplo, com o pressuposto que os espanhóis foram confundidos com deuses pelos astecas e que a ingenuidade nativa contribuiu para sua ruína. Superestima-se a potencialidade do uso da pólvora e dos cavalos, além de vermos os espanhóis como um grupo de bravos soldados da coroa castelhana que, comandados por líderes excepcionais e visionários, conseguiram sobrepujar os nativos.
Tal perspectiva de superioridade – esta quase encarada como natural – é algo que acompanha histórias nos mais diversos países e nas mais diversas épocas. Tais narrativas estão sempre carregadas de um discurso oriundo daqueles que dominam ou obtém êxito no conflito em questão. E na história da conquista espanhola nas Américas, isso não é diferente.
Eis que Matthew Restall, professor da Pennsylvania State University, especialista em estudos latino-americanos (e como algumas de suas obras deixam claro, no império Maia), traz em sua pesquisa uma obra magistral que, com excelentes argumentos e embasadas em fontes escritas tanto espanholas como nativas, gravuras, relatos de intelectuais, entre outras, derruba muitos dos argumentos até então tomados como válidos no que tange à conquista espanhola. Quando não os derruba, ao menos os esmorece, questionando seu status de verdade absoluta.
Em Sete mitos da conquista espanhola, Restall imerge nas fontes e obras já escritas a respeito do tema para desmistificar tal conquista, separando os “sete mitos” por capítulos. No primeiro, o autor trabalha o mito de que os conquistadores eram homens excepcionais, cujos líderes eram brilhantes estrategistas e verdadeiros visionários. Não apenas isso; mostra, apoiado em argumentos sólidos, que nem mesmo Colombo era o homem excepcional que até hoje é mostrado quando o assunto é o descobrimento das Américas. Não era Colombo um gênio solitário que percebera, ao contrário dos seus contemporâneos, que a Terra era redonda; todos os europeus cultos do período, ou ao menos sua grande maioria, compartilhavam de tal tese. Mostra como o mito do navegador, de nacionalidade ainda não confirmada, foi construído, em parte, através de seus próprios escritos, firmando-se principalmente no mundo anglófono do século XIX.
A seguir, Matthew Restall derruba o mito de um exército organizado por parte da realeza castelhana. Os conquistadores espanhóis nada mais eram que homens – alguns de posses, outros não – que recebiam concessões para o empreendimento nas Américas em busca de uma vida melhor. Não havia sequer exércitos “estatais” no período para que tal hipótese tivesse fundamento, algo que teve início apenas no século XVIII.
O terceiro mito é o do conquistador branco. Sabe-se há muito tempo que os espanhóis tiveram um apoio massivo de nativos americanos na derrocada dos Astecas, por exemplo. Contudo, a importância de tal participação costuma aparecer minimizada nas fontes do período. Mais ainda, Restall traz à tona trabalhos anteriores ao seu e fontes que mostram que os espanhóis tiveram uma valiosíssima ajuda de negros, em sua maior parte escravos. Negros lutaram nessa conquista, sendo sua participação crucial para seu sucesso; mas sua participação caiu no esquecimento, graças ao mito do conquistador europeu branco, que tratava a si mesmo como excepcional para legitimar sua presença nas Américas e justificar as concessões régias.
O mito seguinte é o da falha na comunicação entre europeus e astecas. O autor admite que falhas existiram, e certamente não foram poucas, mas mostra que a aplicabilidade de tal análise é deveras vaga, ao mostrar a miríade de relatos sobre casos em específico, onde em cada relato há alguma mudança, seja ela na descrição dos acontecimentos ou em sua interpretação.
Os dois capítulos seguintes abordam os mitos relativos à desolação nativa e o da superioridade espanhola. Os mitos acerca dessas questões mostram os nativos não apenas como ingênuos e incivilizados, mas brutais; a vida dos servos de tais impérios era curta e miserável, e a conquista trouxe, até certo ponto, benefícios aos “bárbaros” do Novo Mundo. Restall mostra como os nativos foram resistentes à dominação, e o quantose adaptaram à presença espanhola, barganhando e tecendo estratégias de assimilação e sobrevivência; mostra uma perspectiva completamente diferente da passividade que outros autores, em outras épocas, ressaltaram: a de uma dinâmica entre povos muito diferente da clássica dinâmica entre “conquistadores e conquistados”, “vencedores e perdedores”. Mostra, portanto, que tal conquista nunca foi completa.
Este livro deve ser lido por qualquer historiador, mesmo que tais temas nada tenham a ver com as áreas de interesse do mesmo. Ainda que seja, em parte, uma compilação de trabalhos anteriores, tal obra é de valor inestimável, não apenas ao derrubar mitos da conquista por terra, mas mostrar aos mais desatentos as armadilhas da interpretação de fontes e relatos, do esmero que deve ser dispensado ao trabalhar com relatos, e de como é possível desconstruir discursos arraigados e tomados como verdade absoluta na historiografia. Obrigatório.