16 de junho de 2009

Peter Burke - Testemunha ocular

BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004.

Quem leu a abertura deste blog talvez lembre do trecho em que eu dizia ter me inspirado em fazer este blog enquanto lia um livro que julgava essencial para qualquer historiador. Pois bem, o livro é este. Testemunha ocular, de Peter Burke.

Burke, como alguns já sabem, mas tantos outro não, é um inglês professor de História Cultura na Universidade de Cambridge e, segundo fui informado, é colunista de um grande jornal de São Paulo no caderno “Mais” de domingo. Casado com uma professora brasileira, Maria Lúcia Pallares-Burke, é um conhecedor de nossa cultura e grande admirador de Gilberto Freyre.

Neste livro, Burke tenta mostrar ao historiador a importância das imagens como fontes históricas. Entretanto, é necessário informar desde o início que o livro, ao contrário do que possa parecer, não é uma espécie de guia com fórmulas para análise de imagens como fontes. Uma de suas principais funções, na realidade, é informar principalmente as armadilhas que as imagens podem oferecer a quem analisa.
Com um prefácio escrito pelo próprio Burke para a edição brasileira, o livro faz uma introdução ao tema, sendo que desta ressalto o trecho em que Burke afirma preferir o termo “indícios” ao invés de “fontes”, pois segundo ele:

“os historiadores têm se referido ao seus documentos como “fontes”, como se eles estivessem enchendo baldes no riacho da Verdade, suas histórias tornando-se cada vez mais puras, à medida que se aproximam das origens. A metáfora é vívida, mas também ilusória no sentido de que implica a possibilidade de um relato do passado que não seja contaminado por intermediários.” (1)

O primeiro capítulo fala sobre a fotografia e a pintura com realismo fotográfico. Principalmente se atendo à primeira, o autor comenta sobre a facilidade com que alguém pode ser enganado pela impressão de realidade que uma foto dá. Afinal, por mais que a imagem esteja fielmente retratada, o que se vê é apenas uma parte do todo, a visão do fotógrafo, e este pode forjar uma cena. Já o segundo trata da iconografia e da iconologia, ambos os termos ás vezes colocados como sinônimos, significando o estudo da mensagem que a imagem tenta passar.

O terceiro capítulo trata do uso de imagens em religiões, geralmente como um instrumento de fé. Entre as discussões do mesmo, estão a figura do diabo, dos santos, a iconoclastia e a propagação de idéias por parte destas, como as imagens que criticavam a Igreja Católica Apostólica Romana, propagadas pelos protestantes. O quarto capítulo, abordando aspectos mais políticos, fala do uso da imagem como arma de protesto e o seu poder para tal fim. Já o quinto mostra a imagem como veículo de propagação da cultura material, bem como ferramenta para sua compreensão, mostrando algumas das principais armadilhas desse tipo de divulgação e alguns casos conhecidos em que a imagem mostrava mais do que a realidade. Claro que não podemos desconsiderar casos em que só através das imagens tivemos acesso visual a coisas que já não mais existem.

O aspecto social é mais discutido em capítulos posteriores. O sexto, intitulado “Visões de sociedade”, aborda a retratação de determinados aspectos sociais e de seus elementos. Uma parte do capítulo, por exemplo, é dedicada apenas à retratação das crianças, enquanto outra é dedicada às mulheres. O sétimo, o primeiro capítulo com o qual tive contato e, na minha opinião, um dos melhores, fala do perigo do estereótipo. A imagem do outro, o desconhecido, formada em cima de clichês ou de pré-concepções é algo pertinente demais na sociedade, e por que não dizer que é algo incrustado no ser humano... de qualquer modo, o capítulo ressalta que nem todo o estereótipo é leviano, sendo por vezes a primeira imagem que se tem de algo que não se conhece, á partir de elementos comuns ao espectador.
O capítulo seguinte é dedicado á idéia de “Narrativas Visuais”, partindo do pressuposto que toda a imagem conta uma história, desde uma imagem única até uma série de imagens. O nono aborda o pintor ou o cineasta como propagadores da história, á partir do momento que deixam de ser testemunha e passam a ser “historiadores”. Novamente Burke atesta para as diversas armadilhas da imagem.
O fim do livro, mais precisamente os capítulos 10 e 11, abordam os aspectos psicológicos e culturais das mesmas. Ao fim do último capítulo, Burke novamente ressalta o objetivo de seu livro. Algumas frases-chave para o entendimento da obra são:

“As imagens dão acesso não ao mundo social diretamente, mas sim, visões contemporâneas daquele mundo [...] O testemunho das imagens necessita ser colocado no “contexto”, ou melhor, em uma série de contextos no plural (cultural, político, material, e assim por diante [...] Uma série de imagens oferece testemunho mais confiável do que imagens individuais [...] No caso de imagens, como no caso de textos, o historiador necessita ler nas entrelinhas, observando os detalhes pequenos mas significativos – incluindo ausências significativas – usando-os como pistas para informações que os produtores de imagens não sabiam que eles sabiam, ou para suposições que eles não estavam conscientes de possuir.” (2)

Possivelmente, a pergunta que fica no ar é: por que este livro é indispensável?

Foi-se o tempo em que a história era apenas uma pesquisa de documentos oficiais, focada em uma história intrinsecamente positivista, onde os documentos falavam por si e demais fontes eram ignoradas. Hoje existe a consciência de que imagens podem nos fornecer valiosos testemunhos que a escrita ou a oralidade não o podem, na maior parte das vezes por um distanciamento da época retratada. Você ultrapassa as barreiras das histórias oficiais e passa a ver, mesmo que como um leve resquício, coisas que estes documentos não podem mostrar, como imagens do cotidiano de pessoas menos favorecidas economicamente e iletradas; ou seja, que não podiam perpetuar seu testemunho.

Sobre o livro, fisicamente falando, é necessário ressaltar que se trata de um exemplar de ótima qualidade. Ricamente ilustrado (o que não poderia deixar de ser) e feito com papel reciclado, é visualmente muito bonito.


Como já ressaltei, este livro não ensina fórmulas de análise. Contudo, fornece informações valiosas sobre os perigos desta mesma análise, tanto quanto ressalta sua importância. Claro que, se você é apenas um entusiasta da história, pode não se interessar pelas entrelinhas de uma imagem, mas fica aqui a dica de uma obra excelente.

Preço médio: R$ 39,90


Notas:
(1) BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem; tradução Vera Maria Xavier dos Santos; revisão técnica Daniel Aarão Reis Filho. – Bauru, SP: EDUSC, 2004. pp 16
(2) BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem; tradução Vera Maria Xavier dos Santos; revisão técnica Daniel Aarão Reis Filho. – Bauru, SP: EDUSC, 2004. pp 236-238

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