Por Rodrigo Prates de Andrade
Lançada no dia 02 de setembro de
2016, a segunda temporada de Narcos – seriado produzido pela Netflix
– fora marcada pela derrocada de Pablo Emilio Escobar Gaviria um dos maiores drug
lords da América Latina. Referido na séria muitas vezes como Don Pablo, o
narcotraficante colombiano não fora o único a receber o pronome don –
outro importante personagem da série fora Diego Fernando Murillo Bejarano, o
Don Berna.
El Don Pablo |
O
leitor possivelmente lembrará de outros personagens históricos tratados desta
maneira: como esquecer Dom Pedro II ou Dom João VI? Utilizado pelos reis de
Portugal e imperadores do Brasil, até mesmo pelos maiores narcotraficantes do
século XX, o termo dom se remetera ao período que hoje conhecemos como a
Idade Média.
Concedido aos grandes homens da
Península Ibérica, o dom, oriundo da palavra latina dominus,
representara a senhoria destes homens sobre uma terra e seus servos, sendo
outorgado a reis, infantes e membros do alto clero e da alta nobreza. Assim,
não bastava ser nobre – era preciso ser um nobre poderoso, deter terras, rendas
e uma vasta rede de homens sob seu serviço.
Os reis ibéricos, por exemplo,
tinham seu poder fundamentado em relações pessoais e patrimoniais que se
estendiam em uma rede de juramentos – um rei possuíra vassalos que, por sua
vez, possuíram vassalos menores que possuíram vassalos ainda menores. O poder
destes monarcas não era sustentado pela propriedade do território em si, pois
quando conquistados, estes eram outorgados aos seus vassalos que os conduziram
à vitória (RUCQUOI, p. 215). É claro que não podemos esquecer que a concessão
de terras gerara um pacto feudal entre o rei e seu vassalo – em que ambos
juraram proteger e honrar o outro – no qual o novo guardião daquela terra
oferecia auxílio militar e parte de suas rendas ao suserano.
Nas Coroas de Aragão, Castela e Portugal o serviço militar prestado por esta nobreza era remunerado sob a forma de um salário e na repartição dos espólios das guerras. Os nobres ainda recebiam de seus reis honores ou tenencias, ou seja, partes dos próprios territórios conquistados (RUCQUOI, p. 218). Contudo, estas terras permaneciam como propriedade do rei, sendo mantidas e protegidas por estes nobres, que igualmente deviam parte de seus rendimentos ao seu senhor (BONNASSIE; GUICHARD; GERBET, p. 197-201).
Iluminura das Cantigas de Santa Maria de Afonso X de Castela – Don Alfonso |
Um
exemplo interessante sobre o emprego do pronome de tratamento dom fora
registrado em meados do século XIII no Livros dos Feitos de Dom Jaime I
de Aragão. Durante o cerco da cidade de Maiorca, um sarraceno chamado Dom Aabet
enviou uma mensagem ao rei Dom Jaime afirmando que entregaria uma partida da
ilha, e que se fosse bem tratado, outros sarracenos também o fariam:
Nós expusemos isso aos nobres da hoste, e todos
disseram que era bom que isso ocorresse. Depois, o sarraceno nos disse para
enviarmos cavaleiros a um lugar seguro, a aproximadamente uma légua da hoste,
que ele sairia dali sob a nossa confiança, para fazer seu pacto conosco e nos
servir de boa fé e sem engano, pois assim nós reconheceríamos o grande serviço
que ele nos faria. Assim, enviamos vinte cavaleiros e o encontramos naquele
lugar. Ele chegou com seu presente, e nos ofereceu cerca de vinte bestas carregadas
de cevada, cabritos, galinhas e uvas. As uvas que ele nos trouxe eram de tal
qualidade que mesmo estando nos sacos não se partiram nem se estragaram (JAIME
I DE ARAGÃO, p. 99-100).
Os nobres perceberam que aquele seria um bom
serviço, pois a hoste cristã, que lutava contra os inimigos da Cristandade,
seria reforçada por estes mesmos sarracenos. Sob a confiança de Jaime, Dom
Aabet pactuou com rei, servindo-o “de boa fé e sem engano”. Para este Ben Aabet
fora dado um pronome de tratamento restrito aos grandes homens da Península
Ibérica - o Dom. Em um processo de
tradução cultural, imputara-se o dom
a Aabet, que provavelmente seria senhor de algumas terras, já que presenteara
Jaime com uvas, cabritos e galinhas, tornando-o membro do reino de Aragão.
Assim,
um Dom representara um grande senhor de terras, um homem que possuíra
rendas como as uvas, cabritos e galinhas de Aabet e inúmeros vassalos como Dom
Jaime. Séculos depois, o narcotraficante Pablo Escobar seria chamado de Don
Pablo justamente por deter um grande império, milhares de dólares e centenas de
homens e sicários sob seu serviço. El Don.
Referências
BONNASSIE,
Pierre; GUICHARD, Pierre; GERBET, Marie-Claude. Las Españas Medievales. Barcelona: Crítica, 2001.
JAIME
I DE ARAGÃO. Livro dos Feitos.
Tradução de Luciano José Vianna e Ricardo da Costa. São Paulo: Instituto
Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio” (Ramon Llull), 2010.
RUCQUOI,
A. História Medieval da Península Ibérica.
Lisboa: Estampa, 1995.