12 de julho de 2016

O terremoto de Lisboa de 1755

O texto abaixo foi publicado no site da Revista de História da Biblioteca Nacional, cujo original pode ser lido aqui.

Por Mary Del Priore

Jacome Ratton costumava assistir à missa na igreja do Carmo, cujo teto ou dorso de animal correspondia à pesada abóbada de pedra. Mas em 1º de novembro de 1755, “na manhã desse dia fatal”, ele não foi. Aguardava um comprador para certa partida de papel avariado que ali se tinha posto a enxugar. Nas águas-furtadas de sua casa, viu da janela que “achava-se o céu risonho como quase sempre é nas felizes regiões da Europa do sul; nem o ar se agitava lentamente”. Não percebeu a agitação dos animais de tração, os cães em disparada pelas ruas, os ratos que deixavam suas tocas, os pássaros em louca revoada. “Três minutos, porém, antes das 10 horas ouviu-se um ruído como se corressem por elas numerosas carroças; ao mesmo tempo estremecia a terra com um movimento violento, ondulante. Estremece a terra e em menos de um minuto ela sorve o cais (da alfândega)... Na cidade levantavam enormes colunas de poeira ao pé das ruas que caíam das ruínas”. Era o início do terremoto que, em 40 minutos, devastaria a cidade de Lisboa.

A poeira, “à maneira de denso nevoeiro que impedia a vista a duas braças de distância”, era intensa também na casa de Ratton, ou no que sobrara dela. “Ao sentir o primeiro abalo”, diz ele, “me ocorreram muitas reflexões a salvar a minha vida e não ficar sepultado debaixo das ruínas da própria casa ou das vizinhas, se descendo as escadas fugisse para a rua; mas tomei o partido de subir ao telhado nas vistas de que abatendo a casa eu ficasse superior às ruínas”.

Ratton era jovem, tinha 19 anos. Razão suficiente para ter suportado ser jogado contra os molhos de papel úmido antes de cair junto com o teto e as paredes que sustentavam a lucarna, uma pequena estrutura no telhado que possui uma janela. Arrastando-se por onde podia, afastando com as mãos os obstáculos que o retinham, ele pulou para o jardim vizinho, fugindo em corrida cega. Teve o tempo de evitar uma rachadura que engoliu uma carroça e seus cavalos aos relinchos, até que o cheiro fétido de enxofre, vindo do Tejo, o paralisou. O rio, “um mato confuso de mastros entrelaçados, e um horroroso cemitério de cadáveres”, ululava. Gania. Foi assim, com a garganta sufocada de fumaça, arranhões e machucados por todo o corpo e as vestes em pedaços, que discerniu, por entre nuvens de fumaça e poeira, o rosto de ensanguentados familiares. A seus pés, uma jovem mulher soluçava, empurrando para o seio sujo uma criança morta.

O óleo sobre tela, Alegoria ao Terramoto de 1755, de João Glama Strobërle, ilustra momentos posteriores ao
evento. (Imagem: MUSEU NACIONAL DE ARTE ANTIGA, LISBOA - PORTUGAL)


Ratton não foi o único a entender o que estava acontecendo. Houve vários observadores do fenômeno entre os membros da próspera comunidade britânica. Existiam cerca de 102 escritórios de comércio, cujos associados e caixeiros eram igualmente ingleses. Havia médicos e cirurgiões, boticários e pequenos lojistas, numerosos o bastante para garantir o sustento independente da comunidade, transformando-a numa cronista avisada do que ocorrera.

Gravura de Jacques-Philippe Le Bas refere-se às ruínas da praça
Patriarchal causadas pelo terremoto e pelo incêndio que se seguiu.
(Imagem: BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL)
Com a tradicional fleuma que os caracteriza, um deles, certo Thomas Chase, assim ressentiu os furores da terra, narrando numa torrente de palavras a história de um horror, passado ao vivo e em cores: “Mal cheguei ao cimo das escadas apareceu ante aos meus olhos o mais horrível panorama que a imaginação pode conceber. A casa começou a erguer-se, a ponto de, para não ser atirado ao chão, ser obrigado a pôr o meu braço fora de uma janela e apoiar-me à parede. Cada pedra das paredes a separar-se e a ranger, como todas as paredes das outras casas, umas contra as outras, com uma variedade de diferentes movimentos, provocava a mais terrível confusão de sons que os ouvidos jamais escutaram. A parede adjacente ao quarto do senhor Goddard caiu primeiro; seguiu-se, então, toda a parte superior da sua casa e de todas as outras, até onde eu podia ver em direção ao castelo; quando olhando de repente para a frente do quarto – pois eu pensava que toda a cidade estava a afundar na terra – vi os cimos de dois pilares tocarem-se; e nada mais vi. Tinha decidido atirar-me ao chão, mas creio que não o fiz, pois senti-me imediatamente a cair e, então, não sei quanto tempo depois, como que a acordar de um sonho, percebi que tinha a boca cheia de qualquer coisa, que tentei tirar com a mão esquerda; e não conseguindo respirar livremente, lutei até a minha cabeça estar totalmente desembaraçada dos destroços”.

A gravura aquarelada Lisboa antes do Terramoto de 1755, de
J. Couse em meados do século XVIII. (Imagem: BIBLIOTECA
NACIONAL DE PORTUGAL)
Na história do terremoto, os quadros de horror transbordam dos documentos. As cenas macabras irrompem no cenário da descrição histórica, sem lhe dar sossego. Com as narrativas do desastre ocorre uma invasão, uma entrada brusca e inesperada de imagens das quais se desprende a precariedade e, ao mesmo tempo, a força dos que ficaram depois que a terra se fechou sobre os vivos. Viver e morrer foram verbos que, então, se conjugavam sem descanso aos olhos dos cronistas e que o historiador tenta acompanhar. Sob as palavras do relato gira o caleidoscópio do medo, da dor e da descoberta da morte. Morte com o seu cortejo de sinais, pois os que procuravam seus entes queridos tinham que enfrentar “restos pútridos, partidos e dispersos”, bem como “o mau cheiro de cadáveres, de tal maneira insuportável... e um cheiro tão nauseabundo que as pessoas começavam a temer infecções”. Viveu-se o horror da morte para concluir cartesianamente como certo G. Rapin, depois de ver expirar, ao pé de um limoeiro chamuscado, sua adorada esposa: “E penso ouvir o leitor filósofo a dizer-me que o sábio deve chorar, porque ele é homem; mas, também, que deve enxugar suas lágrimas, pois é racional”.

Um horror tão formidável, dizia uma testemunha, não se pinta ou descreve, só se sente. Como pode haver termos próprios para exprimir a desumana impiedade com que os pais se apartavam dos filhos, os amigos dos amigos, os maridos das mulheres, para serem sepultados vivos debaixo dos edifícios que se precipitavam? Surdos a tantos ais, respondiam com a fuga. O historiador, porém, não dá conta da dor que secretam os documentos. Eles são relatos aterrorizados do fato histórico mais surpreendente: aquele que não é provocado pelo homem, mas que o revela em toda a sua bestialidade. A catástrofe multiplicou seus sentimentos e suas reações, obrigando-o a ser outro. Diferente daquele que jamais sonhara ou quisera ser.

Mary Del Priore é professora da Universidade Salgado de Oliveira e autora de O mal sobre a terra, uma história do terremoto de Lisboa de 1755 (Topbooks, 2015).

Saiba Mais

ARAÚJO, Ana Cristina. O terremoto de 1755, Lisboa e a Europa. Lisboa: Edição do Clube dos Colecionadores do Correio, 2005.
NOZES, Judite. O terramoto de 1755: testemunhos brita?nicos. Lisboa: British Historical Society of Portugal / Lisóptima, 1990.
SANTOS, Maria Helena Carvalho dos (coord.). Portugal no século XVIII – de D. João V à Revolução Francesa. Lisboa: Universitária Editora, 1991.