21 de junho de 2016

A pirataria de discos por chapas de raio-x nos anos 1950 na União Soviética

O texto abaixo foi escrito por Raphael Fernandes e foi publicado originalmente no site Contravenção. A matéria original pode ser lida aqui.


Por Raphael Fernandes

Se você fosse morador de algumas das Repúblicas da União Soviética, depois da 2ª Guerra Mundial, tinha que se contentar com a cultura imposta pelo governo comunista da época. Ou seja, nada daquela bobagem capitalista vinda do ocidente, como jazz, blues e o rock sob o risco de ir parar na cadeia.

Mas o amor de alguns jovens foi maior do que o medo de acabar em algum campo de trabalho forçado. Assim Elvis, Beatles, Louis Armstrong e muitos outros artistas encontraram o seu caminho para as ruas através de uma das idéias mais fascinantes da história da música: os discos gravados em chapas de Raios-X. 
Os roentgenizdats, como ficaram conhecidos, tornaram-se muito populares entre a classe artística russa entre as décadas de 40 e 50. Baratos, eles eram vendidos como bootlegs às escondidas, através do esquema “amigo de um amigo”.

A qualidade da gravação era precária, mas boa o suficiente para valer a pena o dinheiro economizado em um dia de almoço. Relatos dizem que o som produzido era tão ou mais sombrio que as estampas de ossos fraturados no disco. Em vez dos estalos proporcionados pelos sulcos do vinil na agulha, era possível ouvir um zumbido bem estranho – porém interessantíssimo – por trás da melodia das músicas. 



A origem do roentgenizdat ainda é obscura, mas sabe-se que ele é derivado dos chamados Victory Discs, álbuns com mensagens de soldados americanos para as famílias durante a 2ª. Guerra. Em uma espécie de “serviço social”, o governo dos Estados Unidos colocou a disposição de seus homens algumas máquinas para que eles gravassem seus recados e os mandassem de volta para a América. Eram cabines automáticas munidas apenas de um microfone, que recebiam o som para que um mecanismo riscasse um disco flexível de celuloide prontinho pra ser tocado em qualquer vitrola.

Com o final da guerra, muitas dessas máquinas acabaram abandonadas na Europa e a tecnologia foi amplamente utilizada pela população local. Percebendo o potencial do gravador para a produção de cópias de discos estrangeiros, foi só questão de tempo para que a matéria-prima fosse substituída por uma mais barata e principalmente, menos suspeita para as autoridades.



“Já não tínhamos muitas placas de celuloide disponíveis e quando as encontrávamos eram caríssimas. Daí quando os bombeiros deram a ordem para que os arquivos de radiografias fossem destruídos por serem muito inflamáveis, os hospitais colocaram a nossa disposição enormes quantidades dessas chapas.” conta Ruslan Bogoslowskij no documentário “The World at War” exibido pela BBC nos anos 70. Ele foi um dos primeiros a testar o material e foi tão bem sucedido no processo que criou sua própria gravadora independente em 1947, produzindo milhares de cópias de artistas diversos.  Ficou tão famoso que foi preso 3 vezes por disseminação de conteúdo nocivo.

Em 1959, no auge de sua popularidade entre os jovens soviéticos, os roentgenizdat acabaram recebendo oficialmente o rótulo de “ilegais”. Isso significou um maior controle e um endurecimento da pena: quem fosse pego produzindo, vendendo ou comprando estava bem encrencado.



“Era tudo muito rápido. Depois que me entregavam o disco, a impressão é que todo mundo por perto era funcionário da KGB e me veria como um suspeito. Eu caminhava com o pacote escondido em minhas roupas e pensava ‘pronto, eles sabem que eu acabei de comprar algo ilícito’.” disse Viktor Sukhorukov no mesmo documentário. Fã de jazz, ele conta que costumava fazer as transações em locais públicos e movimentados, como estações de trem e parques. “O disco era muito frágil, podia ser facilmente escondido dentro do jornal, por exemplo. Tínhamos isso ao nosso favor.” finaliza. Mas a fragilidade também era um dos pontos negativos do roentgenizdat. Aqueles que não foram confiscados e destruídos não sobreviveram para contar sua história. Os poucos que conseguiram, hoje valem fortunas e servem apenas como objeto de decoração ou peças de museu.

A febre dos “discos de ossos” acabou com a chegada dos gravadores de fita magnética nos anos 60. Porém, algumas pessoas continuaram a produzir o disco até a década de 70. O assunto promete ganhar nova visibilidade com o livro “Music on Bones”, que está sendo escrito por Eduardo Cadava, professor da Universidade de Princeton (EUA). Ainda não há data de lançamento.