25 de abril de 2016

Relações perigosas?: a intelectualidade de esquerda e o Estado brasileiro


O texto abaixo foi escrito por Rafael Rosa Hagemeyer, professor do Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina, e é uma reflexão conjuntural inspirada no texto de Luiz Felipe Pondé intitulado "A História do Brasil do PT", publicado na Folha de São Paulo. O texto abaixo foi publicado originalmente no Facebook do autor e é aqui reproduzido mediante autorização do mesmo.

Por Rafael Rosa Hagemeyer

O Pondé está triste porque descobriu ontem que a burguesia brasileira é ignorante. Ela não investe em cultura e, por isso, os intelectuais e artistas daqui têm que depender do financiamento público. Ele acredita que esta é a razão pela qual esse grupo social se torna majoritariamente "de esquerda" (algo que tenho minhas dúvidas), devido ao seu "amor ao Estado", que os financia e do qual dependem e tudo esperam.

O problema é que não foi o PT que inventou esse sistema. Aliás, o partido sequer o ampliou nesse tempo em que está no poder.

A carência de um "livre-mercado" de produção cultural é, em nosso país, crônica. Pondé deve ter saudade dos anos 1960, quando num curto período empresas como a Esso, a Coca-Cola, entre outras, financiavam o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (ISEB), para que intelectuais liberais de direita publiquem revistas, produzam documentários e façam propaganda da "defesa da democracia" (liberal), que estaria sendo ameaçada pela agitação do governo Jango. E assim conseguiram criar um clima propício para as Marchas da Família com Deus pela Liberdade, e derrubar o presidente através do golpe militar de 1964, acomodando os brasileiros com a nova situação que deveria ser provisória, diziam - mas sabemos que não foi, durou 21 anos.

No que interessa à cultura, o interesse em financiar intelectuais de direita acabou logo depois do golpe. O que acontece nos primeiros anos do regime militar é o florescimento de uma produção cultural hegemonicamente de esquerda - o que parece contraditório, e motivou várias análises de como isso foi possível, de Roberto Schwarz a Carlos Guilherme Motta. Em parte, pela expansão das universidades, necessárias para formar técnicos para trabalhar nas multinacionais que os militares ajudavam a implantar no Brasil com vantagens. Mas nesse projeto da ditadura havia uma pedra no caminho: a União Nacional dos Estudantes, que já promovia com seus próprios recursos uma produção cultural crítica aos problemas do país, e que os militares não conseguiram desarticular, apesar de terem proibido a organização, que sobreviveu clandestina até pouco depois do AI-5, o ato draconiano do final de 1968.

Impondo a censura, perseguição, tortura, exílio e morte para artistas que discordavam das ideias do novo regime, a ditadura não tinha bons artistas e intelectuais à sua disposição, e sem uma burguesia ilustrada que investisse em cultura (problema crônico em nosso país, que o Luís Felipe Pondé constata, mas não diagnostica), o Estado ditatorial teve que continuar financiando a produção cultural e artística do país, sustentando universidades, com bolsas de pesquisa no Brasil. E devemos lembrar que nesse momento o professor Fernando Henrique Cardoso, depois de ter se exilado em 1964 e voltado a trabalhar na USP em 1968, foi aposentado compulsoriamente depois do AI-5 e acabou conseguindo financiamento nos Estados Unidos junto à Fundação Ford e a Fundação Rockfeller para montar seu Centro de Estudos Brasileiros de Pesquisa (CEBRAP), editando os famosos "cadernos" com o nome desse instituto. Cadernos que denunciam a incompetência do regime autoritário em resolver os problemas sociais, que estavam se agravando.

Com o fim da censura e o processo de redemocratização nos anos 1980 modificou-se o perfil das universidades. Por um lado, ocorreu uma profissionalização maior dos professores, que passaram a investir e produzir suas próprias revistas acadêmicas com maior dinamismo e circulação (fruto do fim da censura), um aprofundamento do debate e da democracia interna. Por outro lado, houve um refluxo do papel dos professores e intelectuais no debate político, cada vez mais pautado pela mídia tradicional, sobretudo a televisão. Mas embora sempre atendendo aos interesses mercantilistas e políticos das grandes corporações e anunciantes, a mídia da época integrou diversas linhas editoriais para atingir um público variado, o que já não ocorre mais.

No âmbito acadêmico, foi nos anos 1990 que se deu a instalação do produtivismo por parte da Coordenação de Aperfeiçoamento de Professores de Ensino Superior (CAPES), que pouco "aperfeiçoou", ao contrário, transformou as universidades em ilhas em que intelectuais discutem entre si mesmos e não dialogam com o restante da sociedade - o famigerado "produtivismo acadêmico", em que se produzem artigos científicos que são quantificados e qualificados segundo critérios positivistas que pouco tem a ver com o impacto social.


Então, se a esquerda domina o campo cultural no Brasil - aquilo que ideólogos de extrema-direita como Olavo de Carvalho chamam de "marxismo cultural" (que mistura Escola de Frankfurt, Foucault, Paulo Freire e Judith Buttler no mesmo saco), parece que isso não tem nada a ver com sua relação com o Estado, nem com o mercado.

Não é culpa da esquerda que a burguesia brasileira é e quer permanecer ignorante como o Coronel Odorico Paraguaçu, e que acha que cultura é telenovela da família brasileira, a ser financiada por anunciantes. Não é culpa da esquerda que o Estado se tornou o único órgão financiador e mantenedor da cultura no país - essa é uma tradição de antanho, como tentamos demonstrar aqui. Se o objetivo do capitalismo é promover a concentração de renda, e não reduzi-la, o Brasil é o país mais capitalista do mundo, historicamente. Se, ao contrário, o Estado ajuda a promover minimamente uma certa distribuição de renda, isso já é visto como "ameaça comunista" pelo pensamento retrógrado e provinciano que defende intransigentemente privilégios e desigualdades sociais como algo natural do país.

Todos nós queremos menos deste Estado patrimonialista, oligárquico, burocrático e parcial. Mas queremos também menos mercado - concentração de poder nas grandes corporações financeiras e midiáticas. Descentralizar e democratizar o Estado é o desafio, e hoje temos consciência que estamos bem longe disso, porque nós - a intelectualidade de esquerda - não estamos no poder, e nunca fomos influentes no governo, nem mesmo nos governos do PT, que sempre foram de coalizão, nunca foram "do PT" de verdade. E se fossem, talvez não resolvesse, pois já não há mais "PT de verdade", só essa maçaroca de alianças governistas que inviabilizam qualquer movimento, à direita e à esquerda.