Em uma postagem no Facebook do Leitura ObrigaHISTÓRIA, colocamos um trecho do livro “O século XX”, de René
Rémond, onde o autor explicava porque era um erro crasso de análise comparar o
governo soviético durante o período stalinista e os fascismos, tendência que o
autor afirma ter sido proeminente, na época (o livro é do começo da década de
1970), na academia nos Estados Unidos. O embate não ficou por lá, haja vista
que na década de 1980 ficou famoso na Alemanha o Historikerstreit, debate entre acadêmicos sobre a comparação ou não
dos crimes nazistas com os crimes soviéticos.
A postagem de hoje, contudo, busca um objetivo diferente: trazer uma referência bibliográfica para todos aqueles que empreendem uma discussão em voga nas redes sociais no Brasil: era o nazismo um regime de esquerda?
A postagem de hoje, contudo, busca um objetivo diferente: trazer uma referência bibliográfica para todos aqueles que empreendem uma discussão em voga nas redes sociais no Brasil: era o nazismo um regime de esquerda?
Os principais argumentos que
defendem essa perspectiva costumam ser:
1 – A interferência estatal
pesada na economia e no livre mercado.
2 – Ser a Alemanha um regime
autoritário de Estado Forte.
3 – O partido nazista se chamar
“Nacional-socialista”.
4 – A postura fortemente
antiliberal de Hitler.
Os dois últimos argumentos não
serão levados em conta nesse texto, já que a bibliografia que aqui trazemos é
focada em outros aspectos. No entanto, basta dizer por ora que o partido se
chamar “Nacional-socialista” faz dele um partido socialista de esquerda tanto
quanto o nome do cavalo marinho faz dele um equino que vive no mar. Quanto ao
antiliberalismo de Hitler, este é notório, já que este considerava o
liberalismo algo essencialmente judeu. Hitler era avesso a qualquer tipo de
internacionalismo, fosse ele econômico, religioso, etc. Contudo, na mesma
medida que considerava o liberalismo um problema, Hitler considerava o
Comunismo ainda pior. Os “bolcheviques” eram para ele judeus dispostos a acabar
com a grandeza da Alemanha.
Por fim, vale dizer que
“socialismo”, nesse período histórico, era um termo em disputa, com grande
prestígio social entre as classes mais baixas. Depois de uma guerra
avassaladora e duas crises econômicas de terríveis proporções (o imediato
pós-guerra e a crise de 1929), o socialismo, em termos generalistas, era uma perspectiva
atraente para muitos. Contudo, este era um termo em disputa pelos diferentes
espectros ideológicos, que tinham seus próprios projetos do que era, de fato,
um socialismo adequado.
Isto posto, discutiremos alguns
trechos da obra O preço da destruição, do professor Adam Tooze. Especialista
em História Econômica e leste europeu, é atualmente professor na
Universidade de Yale. Os trechos a seguir se encontram entre as páginas 134 e
139 na edição brasileira lançada pela Editora Record em 2013.
Um dos grandes problemas nos
debates a respeito de espectros ideológicos do nazismo se dá por uma aplicação
anacrônica de conceitos. Atualmente, é recorrente em alguns nichos acadêmicos
influenciados pelo pensamento da escola austríaca, de que a definição de
direita e esquerda no espectro ideológico se dá a partir da liberdade econômica
e a interferência do Estado na economia.
Essa definição falha
principalmente em dois aspectos: o primeiro, no fato de que ignora matrizes de
caráter político e ideológico na definição de espectros políticos,
especialmente a nível processual. O segundo, em seu anacronismo. Tal definição
é deveras recente e absolutamente rejeitada por praticamente todos os círculos
acadêmicos.
O resultado disso é que, de forma
totalmente descontextualizada, os resultados de eventos históricos são
apropriados sem que sejam compreendidas as raízes profundas do contexto e do
processo, algo fundamental para o
estudo da história. Não espanta que tais definições tenham surgido fora da área
da História.
O resultado disso é uma aplicação
completamente anacrônica dos
conceitos de direita e esquerda a contextos nos quais elas não se aplicavam, ou
mesmo sequer existiam. Recomendamos uma visita ao vídeo do canal Leitura ObrigaHISTÓRIA que explica o conceito de anacronismo.
Recomendamos também o excelente vídeo do canal Xadrez Verbal sobre Direita e Esquerda, demonstrando como estes espectros políticos são analisados e de
que como essa análise precisa estar contextualizada
regionalmente, já que um partido de esquerda em um país poderia facilmente
ser classificado como direita em outro, dependendo do cenário político de uma
e outra nação.
Nesta querela entre os adeptos do
revisionismo anacrônico e os defensores da definição estabelecida, é comum ver
ambos os lados defendendo seus posicionamentos com argumentos muito rasos. Os
revisionistas afirmam, por exemplo, que a intervenção estatal forte do regime
de Hitler é o bastante para mostrar com seu regime seria uma esquerda
socialista e autoritária, enquanto os demais afirmam que a mera existência da
propriedade privada dos meios de produção e o uso de trabalho escravo pelas
indústrias alemãs seria o bastante para revidar o argumento anterior. Ambos os
argumentos (que não são os únicos, devemos reconhecer) são rasos e não se
sustentam a um estudo um pouco mais aprofundado.
No caso dos argumentos do uso de
trabalho escravo e manutenção da propriedade privada dos meios de produção,
isso não é o suficiente para definir um regime como de direita. Defender essa
posição seria a típica “falácia do verdadeiro escocês”, como as famosas “nunca
existiu socialismo de verdade, sempre deturpam os escritos de Marx” ou “nunca
existiu liberalismo de verdade, sempre há Estado demais se metendo” ou "Neoliberalismo não existe porque, se o Estado está se metendo, não é liberalismo, isso é falácia da esquerda". Se a nível
conceitual (ou seja, de acordo com o que essas visões de mundo propõem em seus
escritos “canônicos”) isso faça algum sentido, na prática não é possível
analisar as sociedades dessa forma. Nenhum sistema político e econômico é
aplicado integralmente de acordo com suas propostas, haja vista que todas as
sociedades têm contradições e particularidades que obriga os sistemas a se
adaptarem de forma pragmática à estrutura que os comporta. Este, também, é o
motivo pelo qual a interferência estatal como definidora de esquerda é
improcedente. Esse tipo de argumento gera aberrações conceituais anacrônicas
como afirmar que o Anarquismo é um regime de direita por não prever Estado, por exemplo.
O trecho abaixo se refere a uma reunião ocorrida em 20 de fevereiro de 1933 entre Hitler e alguns dos maiores empresários das grandes indústrias alemãs, na mansão de Hermann Göring, a convite deste último. Esta reunião foi de vital importância para estabelecer as bases da aliança entre o regime e os industriais alemães. Ainda que ela tenha sido praticamente imposta e alguns industriais detestassem a aliança, a perspectiva da aniquilação da esquerda alemã, dos sindicatos e outros “entraves” era bastante animadora para a iniciativa privada.
“Não é possível esconder as provas. Nada sugere que os líderes das grandes empresas alemãs estivessem cheios de ardor ideológico pelo nacional-socialismo, antes ou depois de fevereiro de 1933. Tampouco Hitler pediu a Krupps & Co. que aderissem a uma agenda de antissemitismo violento ou de guerras de conquista. O discurso feito aos homens de negócios na mansão de Göring não foi o mesmo que ele fizera aos generais poucas semanas antes, quando falou abertamente de rearmamento e da necessidade de expansão territorial. Mas o que o Hitler e seu governo efetivamente prometeram foi o fim da democracia parlamentar e a destruição da esquerda alemã, e para isso, a maioria das grandes empresas estavam dispostas a fazer um pagamento inicial substancial.”
"[...] estava claro que muitos líderes do mundo alemão dos negócios
cresceram nessa atmosfera autoritária. No âmbito das próprias empresas eram
eles agora os líderes incontestes, assim entronizados pela legislação
trabalhista nacional de 1934. Proprietários e gerentes, igualmente, aderiram
com entusiasmo à retórica do Führertum. Ela se mesclava com o conceito de
Unternehmertum (liderança empresarial), cada vez mais em voga nos círculos de
negócios, como contraponto ideológico às tendências intervencionistas dos
sindicatos trabalhistas e do Estado de bem-estar de Weimar."
Perceba aí como o apoio ao regime
de Hitler foi fundamental para minar a atuação das esquerdas alemãs e acabar
com a força dos sindicatos. Ainda que houvessem divergências ideológicas entre
muitos desses industriais e Hitler – que, sejamos honestos, estava longe de ser
um liberal – e o governo alemão, a subserviência destes foi um preço baixo a
pagar diante dos lucros vindouros.
"[...] a nova legislação congelou
as remunerações e salários ao nível a que tinham chegado no verão de 1933 e
deixava quaisquer ajustes futuros em mãos de avaliadores regionais do trabalho
(Treuhänder der Arbeit), cujos poderes eram definidos pela Lei de Regulamentação do Trabalho Nacional (Gesetz zur Ordnung der
Nationalen Arbeit), promulgada em 20 de janeiro de 1934. Tal lei é, frequentemente, considerada expressão cabal do poder dos
empresários, pois os níveis nominais de salários que prevaleceram depois de
1933 eram muito mais baixos do que os de 1929. Do ponto de vista empresarial,
no entanto, a situação era muito mais complexa. Embora os salários tivessem
declinado em relação a 1929, o mesmo acontecera com os preços. Na prática, a
Depressão muito pouco aliviou o custo real dos salários. As folhas de pagamento das empresas tinham se reduzido não tanto pela
diminuição dos salários reais e sim mediante demissões de trabalhadores e
manutenção dos demais em regime temporário. Não obstante, quando o
congelamento dos salários de 1933 combinou-se com a destruição dos sindicatos trabalhistas e uma atitude altamente
condescendente para com a cartelização das empresas, [...] a perspectiva de
lucro era, sem dúvida, muito favorável. [...] E o que talvez seja mais
importante é que o regime de Hitler
prometia libertar as empresas alemãs da gestão de seus assuntos internos, ao
livrá-las da supervisão de sindicatos trabalhistas independentes. No
futuro, aparentemente, os salários seriam determinados pelos objetivos de
produtividade dos empregadores e não pelos ditames a negociação coletiva."
Uma vez mais, vemos a supressão
dos sindicatos trabalhistas alemães (não creio que alguém tenha coragem de
classificar sindicatos deste tipo como de direita) e a permissividade do regime
de Hitler quanto à definição dos salários atender aos interesses dos
industriais. Diga-se de passagem, é muito comum na retórica ultraliberal
críticas pesadas às leis trabalhistas brasileiras, por exemplo, afirmando que
os ônus da mesma para os empregadores são o que impede a geração de maiores
empregos e o pagamento de maiores salários. Guardadas as devidas proporções,
não é muito diferente do que os industriais alemães queriam, e efetivamente
tiveram o poder de fazer mediante a intervenção do Estado, em uma relação de
ajuda mútua.
"Para simplificar em prol da clareza, a agenda de tempo de paz dos
elementos mais preocupados com a política no mundo dos negócios alemão
consistia em, pelo menos, duas vertentes, uma doméstica e outra internacional. A agenda doméstica era de conservadorismo
autoritário, com pronunciada aversão
à política parlamentar, impostos elevados, gastos sociais e sindicatos
trabalhistas. A visão internacional
dos homens de negócios alemães, no entanto, era de matriz muito mais “liberal”. Embora a indústria alemã não
fosse absolutamente avessa a tarifas, a Associação Industrial do reich apoiava
fortemente um sistema de movimentação de capitais sem peias e um multilateralismo sustentado pelos
princípios da nação mais favorecida. No caso da indústria pesada, essa
defesa do comércio internacional era ligada a visões de blocos europeus de
comércio, de variadas dimensões. Nas
indústrias importantes, inclusive carvão, aço e produtos químicos, o comércio internacional estavam organizado
na estrutura de cartéis formais, às vezes, de âmbito global.[...] No
entanto, esses arranjos eram todos
escolhidos livremente pelos empresários alemães e seus correspondentes
estrangeiros, independentemente da
interferência do Estado. Nesse sentido, embora não fossem realmente
liberais, era, pelo menos, casos de autoadministração voluntarista dos
negócios."
A principal interferência do
Estado alemão na economia se devia ao fato de ser aquela uma economia de
guerra. O mesmo livro de Tooze nos mostra que uma guerra já estava sendo
arquitetada desde o começo do regime nazista, planejada para a década de 1940.
A mesma se iniciou em 1939 porque a Alemanha percebeu que não poderia sustentar
seu ritmo de produção voltado para a guerra por mais tempo sem agir.
E, por conta disso, o governo
exigia a produção voltada para os interesses nacionais, algo completamente
comum em economias de guerra. Todas as grandes potencias interferiram em suas
próprias economias de modo a voltar o foco da produção para os esforços de
guerra.
No entanto, quanto aos regimes
trabalhistas, salários e comércio internacional, as empresas possuíam uma
grande margem de manobra, invejável atualmente para os parâmetros de muitos
defensores da ausência de Estado na economia. Não podemos dizer com isso de que
não havia o dedo do Estado no processo, já que há provas cabais do contrário.
Contudo, queremos demonstrar com os trechos aqui postados que, ao mesmo tempo em
que o estado alemão interviu em aspectos da economia pelo esforço de guerra,
esmagou as esquerdas alemãs e, com isso, permitiu uma margem de liberdade que
hoje em dia muitos defensores do liberalismo gostariam de ver aplicada em suas
nações.
"Esse contraste entre o autoritarismo doméstico e o “liberalismo”
internacional definia a posição ambígua na qual o mundo alemão dos negócios se
encontrava em 1933. Por um lado, o governo de Hitler levava os empresários
alemães a se aproximarem mais do que antes da realização de sua agenda
doméstica."
[...]
"Hitler não se dirigia a uma parcela da opinião [os empresários] que
estivesse em completo acordo com seu governo; muito pelo contrário. [...]
Agora, a mais profunda crise do capitalismo deixara os empresários alemães
impotentes para resistir a um intervencionismo
de Estado que não vinha da esquerda, e sim da direita."
Percebam que Adam Tooze não nega
a intervenção estatal na economia (seria impossível negar tal fato). Contudo,
falar em “intervenção” genericamente não especifica como ela funciona e em que
aspectos da produção e do trabalho. Tivemos, sim, intervenção, mas esta veio do
espectro político da direita, condicionando a produção ao esforço de guerra
vindouro, mas ao mesmo tempo dando margens de manobra quanto a salários e
empregos e acabando com os sindicatos (e consequentemente seu poder de
interferir em possíveis abusos trabalhistas).
Há muito mais sobre essa questão,
e recomendamos ao leitor interessado a leitura integral da obra “O preço da
destruição”, de Adam Tooze. No entanto, este texto e os trechos acima citados
buscam dar apenas mais uma pequena contribuição a essa discussão que, se
academicamente é tomada quase que majoritariamente como um grande absurdo, por
outro lado seduz pessoas que, ainda por cima, acusam de forma bastante
arrogante quem defende o posicionamento estabelecido de “não estudar”.
Quem acompanha este blog e, especialmente, nosso canal no Youtube, deve ter percebido que tentamos ao máximo não defender bandeiras ideológicas. Tudo o que afirmamos ou é uma opinião embasada em estudos, ou são argumentos de autores acadêmicos. No entanto, uma coisa é discutir qual sistema político é o mais adequado ou qual medida econômica é mais benéfica para um país, outra coisa é discutir se a terra é plana. Apresentar as perspectivas solidificadas a respeito de um assunto como esse não é "esquerdismo" ou "doutrinação", exceto para aqueles que, de forma sensacionalista, se dizem defensores de uma verdade suprimida, a trincheira da sabedoria, que nada contra a maré da mentira e da manipulação ideológica, e que sempre que são refutados, atacam seus adversários políticos, não as ideias dos mesmos. Defender uma ideia como está é um revisionismo grosseiro. anacrônico e insustentável, e ofender profissionais da área, jogando no lixo décadas de pesquisas sobre o assunto como mera "doutrinação" lhe tira qualquer autoridade para discutir sobre o assunto.
"Ideologia", de forma pejorativa, é sempre o conjunto de ideias dos "outros". As suas são sempre "verdade", "neutralidade" ou "esclarecimento". Já pensou como isso é hipócrita? E, mais ainda, já pensou como esse comportamento não vem de apenas um lado do espectro político-ideológico, mas de todos os lados? Pense nisso.
Quem acompanha este blog e, especialmente, nosso canal no Youtube, deve ter percebido que tentamos ao máximo não defender bandeiras ideológicas. Tudo o que afirmamos ou é uma opinião embasada em estudos, ou são argumentos de autores acadêmicos. No entanto, uma coisa é discutir qual sistema político é o mais adequado ou qual medida econômica é mais benéfica para um país, outra coisa é discutir se a terra é plana. Apresentar as perspectivas solidificadas a respeito de um assunto como esse não é "esquerdismo" ou "doutrinação", exceto para aqueles que, de forma sensacionalista, se dizem defensores de uma verdade suprimida, a trincheira da sabedoria, que nada contra a maré da mentira e da manipulação ideológica, e que sempre que são refutados, atacam seus adversários políticos, não as ideias dos mesmos. Defender uma ideia como está é um revisionismo grosseiro. anacrônico e insustentável, e ofender profissionais da área, jogando no lixo décadas de pesquisas sobre o assunto como mera "doutrinação" lhe tira qualquer autoridade para discutir sobre o assunto.
"Ideologia", de forma pejorativa, é sempre o conjunto de ideias dos "outros". As suas são sempre "verdade", "neutralidade" ou "esclarecimento". Já pensou como isso é hipócrita? E, mais ainda, já pensou como esse comportamento não vem de apenas um lado do espectro político-ideológico, mas de todos os lados? Pense nisso.
Icles Rodrigues