3 de março de 2016

"Nazismo de esquerda" e a economia alemã na década de 1930: o problema com os conceitos


Em uma postagem no Facebook do Leitura ObrigaHISTÓRIA, colocamos um trecho do livro “O século XX”, de René Rémond, onde o autor explicava porque era um erro crasso de análise comparar o governo soviético durante o período stalinista e os fascismos, tendência que o autor afirma ter sido proeminente, na época (o livro é do começo da década de 1970), na academia nos Estados Unidos. O embate não ficou por lá, haja vista que na década de 1980 ficou famoso na Alemanha o Historikerstreit, debate entre acadêmicos sobre a comparação ou não dos crimes nazistas com os crimes soviéticos.

A postagem de hoje, contudo, busca um objetivo diferente: trazer uma referência bibliográfica para todos aqueles que empreendem uma discussão em voga nas redes sociais no Brasil: era o nazismo um regime de esquerda?


Os principais argumentos que defendem essa perspectiva costumam ser:
1 – A interferência estatal pesada na economia e no livre mercado.
2 – Ser a Alemanha um regime autoritário de Estado Forte.
3 – O partido nazista se chamar “Nacional-socialista”.
4 – A postura fortemente antiliberal de Hitler.

Os dois últimos argumentos não serão levados em conta nesse texto, já que a bibliografia que aqui trazemos é focada em outros aspectos. No entanto, basta dizer por ora que o partido se chamar “Nacional-socialista” faz dele um partido socialista de esquerda tanto quanto o nome do cavalo marinho faz dele um equino que vive no mar. Quanto ao antiliberalismo de Hitler, este é notório, já que este considerava o liberalismo algo essencialmente judeu. Hitler era avesso a qualquer tipo de internacionalismo, fosse ele econômico, religioso, etc. Contudo, na mesma medida que considerava o liberalismo um problema, Hitler considerava o Comunismo ainda pior. Os “bolcheviques” eram para ele judeus dispostos a acabar com a grandeza da Alemanha.

Por fim, vale dizer que “socialismo”, nesse período histórico, era um termo em disputa, com grande prestígio social entre as classes mais baixas. Depois de uma guerra avassaladora e duas crises econômicas de terríveis proporções (o imediato pós-guerra e a crise de 1929), o socialismo, em termos generalistas, era uma perspectiva atraente para muitos. Contudo, este era um termo em disputa pelos diferentes espectros ideológicos, que tinham seus próprios projetos do que era, de fato, um socialismo adequado.

Isto posto, discutiremos alguns trechos da obra O preço da destruição, do professor Adam Tooze. Especialista em História Econômica e leste europeu, é atualmente professor na Universidade de Yale. Os trechos a seguir se encontram entre as páginas 134 e 139 na edição brasileira lançada pela Editora Record em 2013.

Um dos grandes problemas nos debates a respeito de espectros ideológicos do nazismo se dá por uma aplicação anacrônica de conceitos. Atualmente, é recorrente em alguns nichos acadêmicos influenciados pelo pensamento da escola austríaca, de que a definição de direita e esquerda no espectro ideológico se dá a partir da liberdade econômica e a interferência do Estado na economia.

Essa definição falha principalmente em dois aspectos: o primeiro, no fato de que ignora matrizes de caráter político e ideológico na definição de espectros políticos, especialmente a nível processual. O segundo, em seu anacronismo. Tal definição é deveras recente e absolutamente rejeitada por praticamente todos os círculos acadêmicos.

O resultado disso é que, de forma totalmente descontextualizada, os resultados de eventos históricos são apropriados sem que sejam compreendidas as raízes profundas do contexto e do processo, algo fundamental para o estudo da história. Não espanta que tais definições tenham surgido fora da área da História.

O resultado disso é uma aplicação completamente anacrônica dos conceitos de direita e esquerda a contextos nos quais elas não se aplicavam, ou mesmo sequer existiam. Recomendamos uma visita ao vídeo do canal Leitura ObrigaHISTÓRIA que explica o conceito de anacronismo.

Recomendamos também o excelente vídeo do canal Xadrez Verbal sobre Direita e Esquerda, demonstrando como estes espectros políticos são analisados e de que como essa análise precisa estar contextualizada regionalmente, já que um partido de esquerda em um país poderia facilmente ser classificado como direita em outro, dependendo do cenário político de uma e outra nação.

Nesta querela entre os adeptos do revisionismo anacrônico e os defensores da definição estabelecida, é comum ver ambos os lados defendendo seus posicionamentos com argumentos muito rasos. Os revisionistas afirmam, por exemplo, que a intervenção estatal forte do regime de Hitler é o bastante para mostrar com seu regime seria uma esquerda socialista e autoritária, enquanto os demais afirmam que a mera existência da propriedade privada dos meios de produção e o uso de trabalho escravo pelas indústrias alemãs seria o bastante para revidar o argumento anterior. Ambos os argumentos (que não são os únicos, devemos reconhecer) são rasos e não se sustentam a um estudo um pouco mais aprofundado.

No caso dos argumentos do uso de trabalho escravo e manutenção da propriedade privada dos meios de produção, isso não é o suficiente para definir um regime como de direita. Defender essa posição seria a típica “falácia do verdadeiro escocês”, como as famosas “nunca existiu socialismo de verdade, sempre deturpam os escritos de Marx” ou “nunca existiu liberalismo de verdade, sempre há Estado demais se metendo” ou "Neoliberalismo não existe porque, se o Estado está se metendo, não é liberalismo, isso é falácia da esquerda". Se a nível conceitual (ou seja, de acordo com o que essas visões de mundo propõem em seus escritos “canônicos”) isso faça algum sentido, na prática não é possível analisar as sociedades dessa forma. Nenhum sistema político e econômico é aplicado integralmente de acordo com suas propostas, haja vista que todas as sociedades têm contradições e particularidades que obriga os sistemas a se adaptarem de forma pragmática à estrutura que os comporta. Este, também, é o motivo pelo qual a interferência estatal como definidora de esquerda é improcedente. Esse tipo de argumento gera aberrações conceituais anacrônicas como afirmar que o Anarquismo é um regime de direita por não prever Estado, por exemplo.

O trecho abaixo se refere a uma reunião ocorrida em 20 de fevereiro de 1933 entre Hitler e alguns dos maiores empresários das grandes indústrias alemãs, na mansão de Hermann Göring, a convite deste último. Esta reunião foi de vital importância para estabelecer as bases da aliança entre o regime e os industriais alemães. Ainda que ela tenha sido praticamente imposta e alguns industriais detestassem a aliança, a perspectiva da aniquilação da esquerda alemã, dos sindicatos e outros “entraves” era bastante animadora para a iniciativa privada.


“Não é possível esconder as provas. Nada sugere que os líderes das grandes empresas alemãs estivessem cheios de ardor ideológico pelo nacional-socialismo, antes ou depois de fevereiro de 1933. Tampouco Hitler pediu a Krupps & Co. que aderissem a uma agenda de antissemitismo violento ou de guerras de conquista. O discurso feito aos homens de negócios na mansão de Göring não foi o mesmo que ele fizera aos generais poucas semanas antes, quando falou abertamente de rearmamento e da necessidade de expansão territorial. Mas o que o Hitler e seu governo efetivamente prometeram foi o fim da democracia parlamentar e a destruição da esquerda alemã, e para isso, a maioria das grandes empresas estavam dispostas a fazer um pagamento inicial substancial.”

"[...] estava claro que muitos líderes do mundo alemão dos negócios cresceram nessa atmosfera autoritária. No âmbito das próprias empresas eram eles agora os líderes incontestes, assim entronizados pela legislação trabalhista nacional de 1934. Proprietários e gerentes, igualmente, aderiram com entusiasmo à retórica do Führertum. Ela se mesclava com o conceito de Unternehmertum (liderança empresarial), cada vez mais em voga nos círculos de negócios, como contraponto ideológico às tendências intervencionistas dos sindicatos trabalhistas e do Estado de bem-estar de Weimar."

Perceba aí como o apoio ao regime de Hitler foi fundamental para minar a atuação das esquerdas alemãs e acabar com a força dos sindicatos. Ainda que houvessem divergências ideológicas entre muitos desses industriais e Hitler – que, sejamos honestos, estava longe de ser um liberal – e o governo alemão, a subserviência destes foi um preço baixo a pagar diante dos lucros vindouros.

"[...] a nova legislação congelou as remunerações e salários ao nível a que tinham chegado no verão de 1933 e deixava quaisquer ajustes futuros em mãos de avaliadores regionais do trabalho (Treuhänder der Arbeit), cujos poderes eram definidos pela Lei de Regulamentação do Trabalho Nacional (Gesetz zur Ordnung der Nationalen Arbeit), promulgada em 20 de janeiro de 1934. Tal lei é, frequentemente, considerada expressão cabal do poder dos empresários, pois os níveis nominais de salários que prevaleceram depois de 1933 eram muito mais baixos do que os de 1929. Do ponto de vista empresarial, no entanto, a situação era muito mais complexa. Embora os salários tivessem declinado em relação a 1929, o mesmo acontecera com os preços. Na prática, a Depressão muito pouco aliviou o custo real dos salários. As folhas de pagamento das empresas tinham se reduzido não tanto pela diminuição dos salários reais e sim mediante demissões de trabalhadores e manutenção dos demais em regime temporário. Não obstante, quando o congelamento dos salários de 1933 combinou-se com a destruição dos sindicatos trabalhistas e uma atitude altamente condescendente para com a cartelização das empresas, [...] a perspectiva de lucro era, sem dúvida, muito favorável. [...] E o que talvez seja mais importante é que o regime de Hitler prometia libertar as empresas alemãs da gestão de seus assuntos internos, ao livrá-las da supervisão de sindicatos trabalhistas independentes. No futuro, aparentemente, os salários seriam determinados pelos objetivos de produtividade dos empregadores e não pelos ditames a negociação coletiva."

Uma vez mais, vemos a supressão dos sindicatos trabalhistas alemães (não creio que alguém tenha coragem de classificar sindicatos deste tipo como de direita) e a permissividade do regime de Hitler quanto à definição dos salários atender aos interesses dos industriais. Diga-se de passagem, é muito comum na retórica ultraliberal críticas pesadas às leis trabalhistas brasileiras, por exemplo, afirmando que os ônus da mesma para os empregadores são o que impede a geração de maiores empregos e o pagamento de maiores salários. Guardadas as devidas proporções, não é muito diferente do que os industriais alemães queriam, e efetivamente tiveram o poder de fazer mediante a intervenção do Estado, em uma relação de ajuda mútua.

"Para simplificar em prol da clareza, a agenda de tempo de paz dos elementos mais preocupados com a política no mundo dos negócios alemão consistia em, pelo menos, duas vertentes, uma doméstica e outra internacional. A agenda doméstica era de conservadorismo autoritário, com pronunciada aversão à política parlamentar, impostos elevados, gastos sociais e sindicatos trabalhistas. A visão internacional dos homens de negócios alemães, no entanto, era de matriz muito mais “liberal”. Embora a indústria alemã não fosse absolutamente avessa a tarifas, a Associação Industrial do reich apoiava fortemente um sistema de movimentação de capitais sem peias e um multilateralismo sustentado pelos princípios da nação mais favorecida. No caso da indústria pesada, essa defesa do comércio internacional era ligada a visões de blocos europeus de comércio, de variadas dimensões. Nas indústrias importantes, inclusive carvão, aço e produtos químicos, o comércio internacional estavam organizado na estrutura de cartéis formais, às vezes, de âmbito global.[...] No entanto, esses arranjos eram todos escolhidos livremente pelos empresários alemães e seus correspondentes estrangeiros, independentemente da interferência do Estado. Nesse sentido, embora não fossem realmente liberais, era, pelo menos, casos de autoadministração voluntarista dos negócios."

A principal interferência do Estado alemão na economia se devia ao fato de ser aquela uma economia de guerra. O mesmo livro de Tooze nos mostra que uma guerra já estava sendo arquitetada desde o começo do regime nazista, planejada para a década de 1940. A mesma se iniciou em 1939 porque a Alemanha percebeu que não poderia sustentar seu ritmo de produção voltado para a guerra por mais tempo sem agir.

E, por conta disso, o governo exigia a produção voltada para os interesses nacionais, algo completamente comum em economias de guerra. Todas as grandes potencias interferiram em suas próprias economias de modo a voltar o foco da produção para os esforços de guerra.

No entanto, quanto aos regimes trabalhistas, salários e comércio internacional, as empresas possuíam uma grande margem de manobra, invejável atualmente para os parâmetros de muitos defensores da ausência de Estado na economia. Não podemos dizer com isso de que não havia o dedo do Estado no processo, já que há provas cabais do contrário. Contudo, queremos demonstrar com os trechos aqui postados que, ao mesmo tempo em que o estado alemão interviu em aspectos da economia pelo esforço de guerra, esmagou as esquerdas alemãs e, com isso, permitiu uma margem de liberdade que hoje em dia muitos defensores do liberalismo gostariam de ver aplicada em suas nações.

"Esse contraste entre o autoritarismo doméstico e o “liberalismo” internacional definia a posição ambígua na qual o mundo alemão dos negócios se encontrava em 1933. Por um lado, o governo de Hitler levava os empresários alemães a se aproximarem mais do que antes da realização de sua agenda doméstica."

[...]

"Hitler não se dirigia a uma parcela da opinião [os empresários] que estivesse em completo acordo com seu governo; muito pelo contrário. [...] Agora, a mais profunda crise do capitalismo deixara os empresários alemães impotentes para resistir a um intervencionismo de Estado que não vinha da esquerda, e sim da direita."

Percebam que Adam Tooze não nega a intervenção estatal na economia (seria impossível negar tal fato). Contudo, falar em “intervenção” genericamente não especifica como ela funciona e em que aspectos da produção e do trabalho. Tivemos, sim, intervenção, mas esta veio do espectro político da direita, condicionando a produção ao esforço de guerra vindouro, mas ao mesmo tempo dando margens de manobra quanto a salários e empregos e acabando com os sindicatos (e consequentemente seu poder de interferir em possíveis abusos trabalhistas).

Há muito mais sobre essa questão, e recomendamos ao leitor interessado a leitura integral da obra “O preço da destruição”, de Adam Tooze. No entanto, este texto e os trechos acima citados buscam dar apenas mais uma pequena contribuição a essa discussão que, se academicamente é tomada quase que majoritariamente como um grande absurdo, por outro lado seduz pessoas que, ainda por cima, acusam de forma bastante arrogante quem defende o posicionamento estabelecido de “não estudar”.



Quem acompanha este blog e, especialmente, nosso canal no Youtube, deve ter percebido que tentamos ao máximo não defender bandeiras ideológicas. Tudo o que afirmamos ou é uma opinião embasada em estudos, ou são argumentos de autores acadêmicos. No entanto, uma coisa é discutir qual sistema político é o mais adequado ou qual medida econômica é mais benéfica para um país, outra coisa é discutir se a terra é plana. Apresentar as perspectivas solidificadas a respeito de um assunto como esse não é "esquerdismo" ou "doutrinação", exceto para aqueles que, de forma sensacionalista, se dizem defensores de uma verdade suprimida, a trincheira da sabedoria, que nada contra a maré da mentira e da manipulação ideológica, e que sempre que são refutados, atacam seus adversários políticos, não as ideias dos mesmos. Defender uma ideia como está é um revisionismo grosseiro. anacrônico e insustentável, e ofender profissionais da área, jogando no lixo décadas de pesquisas sobre o assunto como mera "doutrinação" lhe tira qualquer autoridade para discutir sobre o assunto.

"Ideologia", de forma pejorativa, é sempre o conjunto de ideias dos "outros". As suas são sempre "verdade", "neutralidade" ou "esclarecimento". Já pensou como isso é hipócrita? E, mais ainda, já pensou como esse comportamento não vem de apenas um lado do espectro político-ideológico, mas de todos os lados? Pense nisso.

Icles Rodrigues