9 de janeiro de 2012

Ray Raphael - Mitos sobre a fundação dos Estados Unidos


RAPHAEL, Ray. Mitos sobre a fundação dos Estados Unidos: a verdadeira história da independência norte-americana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

Os Estados Unidos é um país onde demonstrações de patriotismo eclodem com alguma frequência, e são exportadas ao redor do globo através do cinema, música e outras formas de comunicação e/ou entretenimento. Tais demonstrações se tornaram ainda mais frequentes após os atentados às torres gêmeas em 11 de setembro de 2001. Muito desse patriotismo exposto de forma orgulhosa está alicerçado na história da independência do país, repleta de exemplos de atos heróicos, atitudes visionárias e uma força de vontade acima do normal para encarar a nação que era, no período, o maior império do mundo.

Contudo, as diversas histórias a respeito da independência dos Estados Unidos do jugo britânico estão repletas de floreios e distorções que as transformaram em histórias palatáveis ao grande público. É este o assunto desta obra brilhante, escrita por Ray Raphael, Mitos sobre a fundação dos Estados Unidos. Seu principal objetivo é demonstrar, através de intensa pesquisa documental, que os mitos a respeito da fundação do país são, em sua maior parte, construções oriundas do século XIX, contaminadas pelo romantismo do período. Tal romantismo transformou indivíduos em heróis e visionários, sendo essa construção positivista romântica do heroísmo individual muito mais atrativa e construtora de um sentimento de orgulho do que um processo histórico formado por conjecturas e cujo protagonismo é coletivo.

Os capítulos do livro se dedicam, cada um, a um mito em especial, mas alguns deles têm traços em comum. Temos exemplos de mitos oriundos da transposição de histórias, condensadas em uma única história com os elementos mais agradáveis ou convenientes (o caso de Molly Pitche, do capítulo 2), mitos sobre ações atribuídas a indivíduos cujo protagonismo é elevado sobre o povo (a cavalgada de Paul Revere, Sam Adams, o discurso de Patrick Henry), o maniqueísmo entre os colonos bons e o colonizador mau, o mito da inferioridade material e numérica dos colonos frente ao império britânico, a mitificação de eventos em detrimento de outros (como Valley Forge), o papel dos indígenas e dos negros, entre outros. O que os mitos têm em comum, nesse caso, é que todos eles foram construídos de uma forma simplificada, objetivando despertar sentimentos patrióticos e de cidadania, a partir de exemplos de esforços individuais que, segundo os mitos, foram determinantes para o sucesso da independência; transforma os ancestrais dos estadunidenses em verdadeiros heróis excepcionais, diante de tão árduo desafio. Estas mitificações apresentam uma série de problemas, os quais Raphael aborda de forma didática, simples e objetiva.

Alguns pontos de maior importância devem ser destacados na análise de Raphael sobre os mitos da independência. O autor muitas vezes bate na tecla sobre o protagonismo do povo na revolução. Homens como Thomas Jefferson, ao qual a Declaração da Independência é creditada – sendo algo que veio do indivíduo apenas –, tornam-se símbolos, e neste processo o papel dos homens comuns é deixado em segundo plano. Para aprofundar o exemplo citado, Raphael argumenta que a declaração nem sequer fora a primeira, haja vista que alguns estados já haviam feito as suas, e a maior parte dos elementos dos quais os estadunidenses se orgulham tiveram uma inspiração gigantesca de filósofos europeus, como John Locke. O perigo desse tipo de romantização do processo é que o papel do povo como construtor dos processos históricos é colocado em segundo plano; tal processo, de caráter nacionalista e positivista, mostra o povo como passivo, necessitado de líderes cuja ausência não permitiria que a independência pudesse seguir seu curso. Algo antidemocrático, que ao invés de inspirar o indivíduo a tornar-se agente ativo na sociedade, o condiciona a lideranças que lhes ditem as ações.

O maniqueísmo presente no mito, que romantiza o colono em desvantagem numérica reagindo à brutalidade britânica ou suportando passivamente as intempéries, é também prejudicial. Ao contrário do que se tenta fazer crer, histórias como as do inverno em Valley Forge – onde os soldados teriam resistido resignadamente ao rígido inverno entre 1777 e 1778 – estão repletas de uma imensa complexidade, relegada á segundo plano em detrimento de uma história moralizante de resignação diante não apenas do inimigo estrangeiro, mas da implacabilidade da natureza. Os combatentes, cujas necessidades alimentares e de vestuário eram constantemente negligenciadas pelo governo, se viam diante da necessidade de saques e mesmo da deserção, e lutavam por direitos e melhores condições; tal luta algo que nem de longe deveria ser motivo de vergonha, mas os mitos que apagam tais eventos os tratam como se houvesse, de fato, motivo para se envergonhar.

A obra de Raphael deveria ser lida por todo cidadão dos Estados Unidos. Os mitos fundadores do país estão de tal forma entranhados no cotidiano do país que tal esforço em forma de livro dificilmente teria um grande efeito desestabilizador. Apesar disso, a mensagem que o autor deixa clara por mais de uma oportunidade no decorrer da obra é que as verdades por trás dos mitos não são motivo de vergonha ou tiram o crédito dos colonos e revolucionários do período, muito pelo contrário. Demonstrar a complexidade dos processos que culminaram na independência e o desenrolar deste acontecimento coloca o povo no centro da questão, humaniza os personagens e mostra ao cidadão que a luta coletiva e a democracia, mais do que seguir líderes visionários, parte da coletividade. Como Raphael diz em sua conclusão, “o debate contencioso é mais adequado ao funcionamento de uma sociedade democrática do que a recitação decorada”. Ao invés do apego a exemplos excepcionais e histórias polidas, o autor propõe o debate e a deliberação coletiva das questões pertinentes aos cidadãos tal como era feito no passado.

Para complementar o pensamento, cito ipsis literis o último parágrafo da obra:

Quem controla a narrativa, controla a história. Essa é uma mensagem poderosa. Os que a ignoram permanecerão cegos para a manipulação dos outros, mas os que a aceitarem, como o povo na Revolução Americana, serão capazes de questionar o abuso de autoridade e assumir o controle do seu destino.

Leitura obrigatória para qualquer historiador e indicado a entusiastas, exceto àqueles que possuem uma aversão absoluta aos Estados Unidos, seja lá por quais razões.

Preço médio: R$ 40,00


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