Sem dúvida, a originalidade e a inovação são caminhos que levam qualquer profissional, de qualquer área, a tornar-se referência. Eis que na historiografia essa regra não é inexistente. O inglês Peter Burke reitera isto ao publicar esta obra, A escola dos Annales.
Annales foi uma revista criada na França em 1929, responsável pela criação do que hoje é chamado de “Nova História”. Até o momento da criação desta revista, a história era basicamente positivista. Esta história consiste na exaltação de grandes homens, grandes feitos, uma história política que em muitos casos era uma forma de legitimação. Quaisquer outras abordagens históricas, quando tentadas, dificilmente recebiam o devido interesse. Aos poucos, essa história positivista fortemente influenciada pelas Ciências Naturais começou a receber duras críticas, principalmente por parte dos durkheimianos. Foi então que Lucien Febvre e Mark Bloch criaram a já citada revista Annales. Sua metodologia, que futuramente se estabeleceu como novo paradigma, consistia em abrir caminho para uma interdisciplinaridade entre a história e as Ciências Sociais, aos poucos estendendo esta conexão com outras disciplinas como a Geografia, Antropologia e a Psicologia.
A história que até o momento consistia apenas em apresentar a narrativa de acordo com as fontes – e nesse caso as fontes dificilmente ultrapassavam os limites da escrita – passou a apresentar mais do que narrativas, mas problemáticas; deixando de focar exclusivamente em grandes feitos, abrindo caminho para o estudo de temas cotidianos. Essa roupagem que lembrava as ciências sociais deu à história uma concepção mais científica que até o momento relutava-se em admitir.
Sendo um pouco mais específico, pode-se dizer que a história tradicional era narrativa, possuía uma cronologia definida, escrita de forma linear, usando documentos oficiais como fonte, era evolucionista e privilegiava fatos de cunho político. A história-problema foge deste padrão, a começar pelas fontes. Tal qual Gilberto Freyre fez em seu clássico Casa grande e senzala, o novo historiador utiliza-se de fontes diversas, de imagem à arquitetura. Dispensa uma ordem cronológica e, mais do que reproduzir os documentos, ele precisa interpretá-los; escolhe um objeto de estudo presente e busca as respostas no passado. Não tenta ser imparcial, anulando sua crítica e sua opinião, e claramente escolhe os fatos de acordo com o que for mais conveniente para seu estudo. Mais do que narração de fatos, essa Nova História está carregada de senso crítico.
A primeira geração da escola dos Annales foi liderada basicamente pelos seus criadores: Lucien Febvre – o maior defensor da história-problema, do uso de fontes não-documentais e do diálogo entre os historiadores quanto a suas metodologias – e Mark Bloch. Estes, entre outras coisas, buscavam mais do que as singularidades da história, marca positivista; buscavam uma “história das mentalidades”. Algo diferente do que o líder da segunda geração da escola, Fernand Braudel, focalizou.
Braudel acreditava em uma história de “três períodos”. A história de curta duração, média duração e longa duração. A primeira podemos explicar fazendo uma analogia com as noticias que diariamente vemos nos jornais. Fatos que fazem parte de uma história de um curto período. Um período maior classifica-se como média duração e por fim, a história de longa duração é aquela que para Braudel importava. A história de longa duração não sofria interferência de pequenos fatos, da história de curta duração.
Criando sua metodologia em cima de uma história que, mantendo-se interdisciplinar, era claramente quantitativa, Braudel usou a demografia e o tempo como objetos de estudo. Sua obra mais importante, O Mediterrâneo e Felipe II, é um claro exemplo disto. A obra apresenta de forma clara que, para o autor, a geografia e o tempo são de importante influência na história. Não podemos ignorar, obviamente, o fato desta obra ter sido criticada consideravelmente, mas seria um erro ainda maior ignorar os paradigmas que ela ajudou a fortalecer. Neste ponto a história das mentalidades sofreu um decréscimo de importância, visto que nesta nova abordagem quantitativa a história das mentalidades não possuía a mesma sustentação que a história socioeconômica.
Durante a terceira geração da escola dos Annales, duras críticas foram advindas de sua abordagem. Por conta de sua crítica, os historiadores do movimento foram acusados de negligenciarem a história política. A crítica não procedia, pois o afastamento da história política não era algo generalizado dentro dos Annales. Nesta época há uma retomada da história narrativa e de eventos.
O livro de Peter Burke não é o único que aborda a escola dos Annales. Contudo, pode ser considerada a mais bem-sucedida síntese do que foi este movimento e o que ele significou para a história. Desmistifica a idéia de conflito entre a História Cultural e a História Marxista, nos apresenta com riqueza de informações a evolução do movimento, seus grandes nomes e suas metodologias. Historiadores em geral devem ter contato com esta obra, já que dela podem ser extraídas informações cruciais para o entendimento das mudanças que marcaram a escrita da história no século XX. Se hoje a história é tão vastamente fragmentada – e não dou a esta fragmentação um caráter pejorativo, visto que o leque de possibilidades aumenta consideravelmente –, devemos isto em grande parte ao movimento que este livro tão competentemente analisa.
Preço médio: R$ 30,00
Leia também, do mesmo autor:
Hibridismo cultural
Testemunha ocular